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À porta da morgue. "Ilustração Portuguesa", n.º 589, 4 de junho de 1917, p. 448-449.
REVOLTA DA BATATA (MAIO 1917)

A participação de Portugal na I Grande Guerra (1914-1918) agravou de forma severa as condições de vida da população portuguesa. A escassez e as dificuldades de abastecimento de géneros alimentares provocaram movimentos de protesto social por todo o país, nomeadamente nos meios urbanos. Ao longo deste período, sucederam-se greves, comícios, motins e outras manifestações contra a carestia de vida, a inflação, os salários baixos, assim como contra os racionamentos, a especulação e os açambarcamentos de produtos de primeira necessidade.
Em maio de 1917, tiveram lugar, na região de Lisboa, assaltos populares a mercearias, padarias, restaurantes e outros estabelecimentos comerciais, em consequência da falta de víveres.

Na origem dos incidentes terá estado o aumento súbito do preço da batata, alimento muito procurado pelas classes mais desfavorecidas, devido à escassez de pão.

Este movimento, que ficou conhecido como Revolta da Batata, coincidiu com a paralisação dos trabalhadores da construção civil que, em 19 de maio, convocaram uma manifestação no Parque Eduardo VII, em Lisboa, reivindicando aumentos salariais.

Os tumultos, reprimidos pelas forças da autoridade, resultaram em cerca de 400 presos e 40 mortos. Na região de Lisboa é decretado o estado de sítio.

Na Câmara dos Deputados, na sessão de 22 de maio, a situação é discutida, com a presença do Chefe do Governo, Afonso Costa, que justifica as medidas tomadas, entendendo o ocorrido como um movimento destinado a provocar a desordem e não a contestar a atuação do Governo no problema das subsistências:

"(…) Foi só depois dos sucessos da noite de sábado para domingo e da teimosia em efetuar o comício no Parque Eduardo VII, atacando-se a força pública, que o Governo resolveu usar do direito de decretar a suspensão de garantias e acrescenta que sobre a origem dos acontecimentos e sua evolução o Governo espera, para pronunciar-se em definitivo, pelos relatórios circunstanciados das diversas autoridades e pelas investigações de carácter administrativo e judicial que hão de ser feitas, não querendo sobre eles pronunciar-se de forma que embaraçasse a ação da justiça. Deve, contudo, dizer que a intervenção dos sindicalistas ou anarquistas se revelou na maneira como os acontecimentos surgiram e se desenrolaram, pois que tendo a classe da construção civil manifestado o desejo de realizar um comício em que fosse tratada a questão do aumento de salário, o Governo aconselhou a comissão que o procurou a que visse bem que o momento não era de molde a facilitar a obtenção desses desejos menos urgentes do que outros, como fosse facilitar braços à agricultura e à indústria e transformar o sistema dos serviços das obras do Estado, por forma que deixem de ser mais de assistência do que de dignificação do trabalho, e conceder-lhe que o comício fosse realizado. Mais tarde essa concessão foi revogada, e os operários da construção civil acataram essa ordem, apesar de que indivíduos em grande número se reuniam na Rotunda, lançando-se no caminho do ataque direto, por meio de armas de fogo e bombas de dinamite a que teve de responder a força pública para se desafrontar.”

(…)

De seguida, refere os acontecimentos de dia 19 de maio no mercado da Praça da Figueira, em Lisboa, em que se assaltaram “géneros e mercadorias de primeira necessidade, especialmente batata que foi destruída ou arrebatada querendo a esses factos atribuir os comerciantes a razão do aumento do preço que, quase em geral, se deu nesse mesmo dia."

(…)

Afirma que o Governo irá “atenuar a difícil questão do pão, a do carvão, do enxofre e outras” e lançar as bases para “diminuir graves dificuldades que podem surgir amanhã pela paragem quase total da navegação para a alimentação continental, insular e colonial durante o ano próximo.”

(…)

O socialista Costa Júnior contesta, afirmando que os tumultos tiveram origem na incapacidade dos governos em resolver a questão das subsistências, mas também “na ganância desmesurada dos comerciantes que elevaram extraordinariamente o preço dos géneros de primeira necessidade”. Aponta também os excessos da guarda republicana na repressão aos tumultos.

Brito Camacho apresenta uma moção em que atribui o ocorrido “à imprevidência dos poderes públicos”, deixando agravar o problema das subsistências. Afirma:

“Não era segredo para ninguém que muitas famílias em Lisboa estiveram dois e três dias sem comerem pão, e posso garantir a V. Exas. que em minha casa houve pão porque o mandei vir da província. Mas quem manda vir pão da província não faz do pão a base da sua alimentação, nem vem para a rua protestar contra a carestia da vida. E apesar destes factos, que providências tomou o Governo? Absolutamente nenhumas.

De resto, responde a essa falta de pão o encarecimento, absolutamente injustificado e mercê da ganância dalguns merceeiros e armazenistas, de alimentos indispensáveis às classes pobres, como seja a batata e a bolacha de baixo preço.

Não têm desculpa os gananciosos merceeiros que, tendo dentro dos seus estabelecimentos a batata, a aumentaram para um preço exorbitante dum momento para o outro.

Elevaram em muitos por cento os preços de mercadorias, o que jamais deveriam ter feito porque as tinham dentro dos estabelecimentos.

O Governo devia, portanto, prever os acontecimentos, se é que não tinha conhecimentos deles, mas o facto é que os estabelecimentos que estavam ameaçados não tiveram um elemento único de defesa, e não se tratava apenas de saquear mercearias ou armazéns, mas de inutilizar muitos géneros de alimentação que eram indispensáveis mesmo para os próprios que saqueavam. Era absolutamente indispensável que os estabelecimentos fossem defendidos, não para manter a ganância do comerciante, mas para garantir os géneros, que existiam em Lisboa e que hoje já não existem porque foram destruídos sem nenhuma espécie de utilidade em relação aos seus proprietários, o que representa um crime, e em relação a nós todos consumidores, o que representa um incitamento a novas desordens e tumultos.”
 
(…)

O Deputado João Gonçalves acusa também o Governo de não ter sabido prevenir os acontecimentos:

“O Governo, efetivamente, sabia dos factos que se iam dar, foi prevenido a tempo, e, no entanto, não soube impedir esses factos; portanto, é um Governo que não tem força, nem prestígio, para manter a ordem no país.

Eu fui para casa por volta da meia-noite, e já pelas 11 horas da noite os assaltos se começaram a dar; pediram-se socorros e ninguém apareceu, e os saques continuaram até de madrugada. Eu não quero citar factos mais graves, que demonstram o espírito de indisciplina que lavra na sociedade portuguesa. Eu vi hoje documentos que provam que essa indisciplina é gravíssima. Mas a culpa pertence àqueles que não têm sabido orientar a opinião pública, ou a têm desorientado em proveito dos seus interesses políticos.

(…)

O preço da batata foi a última gota de água na paciência deste povo, que, apesar dos seus excessos, é um povo generoso e bom.

O Governo, logo que soube que não tínhamos trigo necessário para acudir ao consumo de Lisboa, devia prever a alta daquele género que o podia substituir, e imediatamente, visto o seu critério intervencionista, devia ter adotado uma tabela para evitar o aumento da batata. Mas não o fez.

Os gananciosos, os indivíduos que procuram locupletar-se à sombra de qualquer situação, aproveitaram a oportunidade para aumentarem o seu preço em 200 por cento.

Isto que se deu com a batata dá-se infelizmente com todos os outros géneros que interessam à economia nacional. E se é pavorosa a orientação do nosso comércio, pela alta que praticou no preço dos artigos, não menos pavorosa é para mim a ação inerte do Governo, que parece muitas vezes feito com os próprios gananciosos, tantas dificuldades levanta à aquisição dos géneros de primeira necessidade. E eu, francamente, não sei como aquilatar os dois criminosos: Governo e açambarcadores!”

Apoiando o Governo, Catanho de Meneses descreve a revolta como um “movimento de exploração com a fome”:

“Compreende-se, realmente, que a fome leve até a invadir os estabelecimentos e tirar de lá os géneros, – em toda a parte isso sucede, – mas não a invadir os estabelecimentos e inutilizar os géneros, e, por exemplo, abrir as torneiras das talhas de azeite e deixá-lo correr, e ainda assaltar as ourivesarias, e levar para a rua um cofre que a força pública conseguiu salvar das mãos, não do povo, não daqueles que ingenuamente tinham entrado no movimento, mas dos que tinham explorado com ele.”

O debate entre Governo e oposição prolonga-se pelos dias 23 e 24 de maio. A Revolta da Batata era ocasião para discutir um dos problemas mais prementes da época: a questão dos abastecimentos e das subsistências.

Diário da Câmara dos Deputados, n.º 71, 22, 23 e 24 de maio de 1917
Ver também Diário do Senado, n.º 60, de 24 de maio de 1917
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