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“INDOMADA E INDOMÁVEL”
A CANDIDATURA DE NORTON DE MATOS À PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA
(1948-1949)


Portugal não participou na Segunda Guerra Mundial, mas os efeitos do maior conflito bélico de sempre não se deixaram de fazer sentir no país, levando o Estado Novo à primeira grande crise política da sua história. A partir de 1943, a provável vitória dos Aliados gerou grandes expectativas entre as forças oposicionistas. Pensava-se que a ditadura salazarista não poderia resistir à onda democratizante que se expandiria pela Europa após a queda dos fascismos. É neste contexto que, em finais de 1943, surge o Movimento de Unidade Nacional Antifascista (MUNAF), uma organização clandestina - promovida por um Partido Comunista Português (PCP) reorganizado e renovado - e que tinha como objetivo a coordenação das várias forças políticas de oposição ao Estado Novo.
Cartaz da campanha de Norton de Matos para as eleições presidenciais de 1949. Fundação Mário Soares.
Cartaz da campanha de Norton de Matos para as eleições presidenciais de 1949. Fundação Mário Soares.
Bilhete postal reproduzindo fotografia do General Norton de Matos, julho de 1948. Fundação Mário Soares.
Recorte de jornal com retrato de Norton de Matos da autoria de Júlio Pomar, 1949. Fundação Mário Soares.
Apesar das ondas grevistas de 1942-1945 e das várias tentativas de golpe militar entre 1945 e 1947 - umas abortadas, outras detidas já em curso - o primeiro grande momento da Oposição, nos anos 40, surgiu, quando, com o fim da Guerra, Oliveira Salazar, numa jogada tática motivada pelo ambiente político internacional adverso ao regime, anunciou, entre outras medidas aparentemente liberalizantes, a dissolução da Assembleia Nacional e a convocação de eleições legislativas antecipadas para novembro de 1945, as quais seriam, nas suas palavras, “tão livres como na livre Inglaterra” (1). É então que os setores liberais do MUNAF, na tentativa de se destacarem dos comunistas e se apresentarem a eleições como uma oposição moderada e ordeira, empenhada numa transição pacífica e legal, fundam o Movimento de Unidade Democrática (MUD), que, no ano seguinte, conheceria, também, uma versão juvenil (MUDJ). O seu enorme sucesso inicial em todo o país, bem expresso no número de adesões, assusta o regime, que rapidamente reage, dificultando ao máximo a campanha eleitoral do MUD por meio de perseguições, restrições e censura. Confrontado com as irregularidades do processo eleitoral, o MUD acabará por desistir de se apresentar a votos (2).

O segundo, e último, grande momento da oposição ao Estado Novo nos anos 40 só se iniciaria alguns anos mais tarde, em julho de 1948, quando o general José Maria Norton de Matos anunciou a sua candidatura à Presidência da República. Por essa altura, já o MUD tinha sido ilegalizado e a sua Comissão Central, então já com hegemonia comunista, presa, naquilo que foi o culminar da vaga de repressão que o regime, entretanto restabelecido e fortalecido, lançara sobre a oposição a partir de 1946 (prisões, demissões, saneamentos). Ainda assim, é na sua estrutura organizativa e na sua rede de apoios que a candidatura do general vai assentar (3).

Norton de Matos, que havia completado já oitenta e um anos, e que presidia ao MUNAF desde a sua fundação, era um dos republicanos históricos vivos de maior prestígio. Durante a Primeira República, além de grande responsável pela organização do Corpo Expedicionário Português que combatera na Flandres, fora Deputado, Ministro das Colónias, Ministro da Guerra, delegado português na Conferência de Versalhes, Governador-Geral e Alto-Comissário da República em Angola, e embaixador de Portugal em Londres. Depois da queda da República, fora Grão-Mestre do Grande Oriente Lusitano Unido e membro ativo em várias conspirações reviralhistas. Não obstante alguma resistência de personalidades importantes mais à direita no espetro da oposição (António Sérgio, Francisco da Cunha Leal), ou a preferência inicial de alguns membros da Comissão Central do MUD, entre eles o jovem Mário Soares, por Mário de Azevedo Gomes, a escolha de Norton acabou por conseguir a aprovação de uma grande e diversificada maioria das forças oposicionistas (4): republicanos e socialistas de várias tendências, comunistas, maçons, membros do grupo da Seara Nova (“seareiros”), anarcossindicalistas, católicos e monárquicos progressistas (5).

A apresentação da candidatura ocorreu em casa do general, a 12 de julho, numa conferência de imprensa a que assistiram cerca de três dezenas de jornalistas, portugueses e estrangeiros. Na declaração que Norton de Matos então fez revelaram-se, de imediato, as contradições internas na frente política que o apoiava: apresenta-se como um republicano liberal, um reformista social de tipo britânico, avesso tanto ao conservadorismo, como ao socialismo e ao comunismo, mas, ao mesmo tempo, afirma ser apoiado por socialistas e comunistas. Embora tivesse explicado que a sua candidatura pretendia ser inclusiva e que a ilegalidade do PCP era, ela mesma, ilegal, a verdade é que aquele paradoxo iria ser, depois, explorado habilmente pelo regime (6).

A Comissão Central dos Serviços da Candidatura era constituída, entre outros, por Jacinto Simões, Manuel Mendes, Mário de Lima Alves, Mário Soares (como representante do MUDJ) e por republicanos históricos, como o Almirante Tito de Morais e o seareiro Azevedo Gomes (7), segundo Mário Soares, o “orientador político da campanha” e autor, em boa parte, do manifesto intitulado “À Nação”, publicado logo depois da apresentação da candidatura (8). Com um prólogo em que se anunciava o candidato como de “oposição ao regime atual”, exprimindo “a forte corrente, provadamente indomada e indomável”, o documento expunha um plano de desenvolvimento económico e de incremento colonizador dos territórios ultramarinos (porventura não muito diferente das intenções do Estado Novo nesse campo), para desembocar, depois, nas verdadeiras medidas de rutura previstas, as de cariz político: amnistia para os presos políticos e sociais, abolição da polícia política, da censura, da prática de tortura e dos campos de concentração, e “restituição aos cidadãos portugueses das liberdades fundamentais”, como as de crença, culto, expressão, reunião e associação (9). E terminava explicando que o objetivo de Norton de Matos, caso fosse eleito, era apenas promover a eleição de uma “Câmara Constituinte”, de onde sairia uma nova Constituição. Atingida essa meta, a sua missão estaria cumprida (10).

Como seria de esperar, Norton de Matos não teria um percurso fácil. Desde logo porque o Supremo Tribunal de Justiça só publicou o acórdão de aprovação da sua candidatura em dezembro, o que, impedindo-o “de agir como um candidato” (11), lhe reduziu a margem de manobra durante toda a segunda metade do ano. A sua casa esteve vigiada pela polícia e as suas deslocações pelo país eram controladas rigorosamente. Os pedidos de reunião pública foram rejeitados, e a censura procedia de modo implacável para com a imprensa e os comunicados da candidatura. De nada valeram as repetidas representações e cartas de protesto enviadas pelo General ao Presidente da República e ao próprio Salazar (12).

O período de campanha eleitoral iniciou-se a 2 de janeiro de 1949. Embora Marcelo Caetano e outras personalidades do regime tenham tentado convencer Salazar a apresentar-se como candidato presidencial da “situação”, Norton de Matos acabou mesmo por ter como adversário o Presidente da República em funções há mais de duas décadas, o Marechal António Óscar Carmona. Embora a campanha de Norton de Matos tenha conseguido promover grandes manifestações de apoio popular, em Évora, Beja, mas, sobretudo, nos dois comícios que realizou no Porto (falou-se em cerca de cem mil pessoas, no comício da Fonte da Moura), o General travou uma luta inglória. Primeiro, porque o Governo continuou a criar toda a espécie de entraves possíveis às suas ações de campanha, desde proibições a prisões, passando por sabotagens. Depois, teve que enfrentar a máquina de propaganda montada pelo regime para o atacar, a qual explorou não só o seu passado como figura de proa da República e da Maçonaria, como a sua aliança presente com os comunistas, de modo a despertar medos de anticlericalismo, de caos político-social e de uma “ameaça vermelha”. Neste último caso, o regime quase conseguiu abrir uma brecha no grupo de apoio a Norton, com o general, à última hora, a ser travado de fazer uma declaração pública em que se demarcava dos comunistas. Em segundo lugar, porque o dia das eleições - 13 de fevereiro - se ia aproximando e o Governo, tal como nas eleições legislativas de 1945, não criara as condições necessárias para que o processo eleitoral decorresse com o mínimo de seriedade e honestidade. Segundo Mário Soares, “para além dos atropelos da censura e da polícia política que eram, por assim dizer, correntes, o pão nosso de cada dia, havia as fraudes do recenseamento […] e não estava assegurada de forma alguma a fiscalização da Oposição ao próprio ato eleitoral” (13).

Perante este cenário, as contradições internas da candidatura emergiram, com os comunistas a defenderem a desistência de Norton de Matos, de modo a não legitimarem uma ditadura participando numa farsa, e o setor liberal, entusiasmado com as grandes manifestações populares no Porto, a querer ir até ao fim para, depois, tirar proveito político a partir da “prova do roubo eleitoral” (14). A 7 de fevereiro, da reunião de delegados das estruturas de apoio a uma candidatura já muito dividida saiu a decisão de desistir, muito contra a vontade do General.

Como era esperado, Carmona foi reeleito e, na sua primeira sessão após o sufrágio, a Assembleia Nacional, pela voz do ultraconservador e amigo pessoal de Salazar, Mário de Figueiredo, apressou-se a fazer o discurso de autocongratulação do regime. Na sua intervenção, Figueiredo atribuiu a vitória ao medo do povo em voltar à perseguição religiosa e à “desordem anterior a 1926”, que Norton de Matos e os seus apoiantes representavam. A propaganda do regime tinha, assim, conseguido despertar a consciência dos portugueses para “a obra imensa do Estado Novo”, e do que estava em risco naquela disputa. Nas suas palavras, “a gente só dá conta do bem que tem, só se agarra verdadeiramente a ele, quando o sente ameaçado”. Quanto ao apoio popular demonstrado à candidatura de Norton, Figueiredo desvalorizou-a: “O cartaz, quando se vai sucessivamente de acordo com as boas regras táticas de propaganda, faz acreditar que por trás dele se esconde uma força considerável que, na verdade não existe. Foi o caso da propaganda eleitoral por parte da oposição. À superfície muito barulho, no fundo o povo a assistir.”

Entretanto, iniciara-se uma vaga repressiva sobre a oposição, com as habituais prisões e saneamentos, e o PCP a ser quase desmantelado. Na Assembleia Nacional, em abril, o Deputado António Maria Pinheiro Torres proferia um discurso inflamado, em que apelava à perseguição sem tréguas e ao saneamento de todos os opositores ao regime que ocupavam cargos públicos, de modo a estancar a sua ação subversiva. Procurou, ainda, explorar o apoio comunista à candidatura de Norton de Matos, para atingir a oposição liberal que se dizia “ordeira”: “caberia, assim, também averiguar, para lhes aplicar as mesmas sanções, até que ponto os elementos da oposição recorrente à campanha eleitoral são coniventes com os comunistas nas obras de traição à Pátria. Porque a verdade é esta: apesar de estar demonstrado inequivocamente que os comunistas portugueses, como os de todo o Mundo, trabalham a soldo da Rússia, até agora, nem o chefe da oposição, por si e pelos seus adeptos, nem estes tão-pouco, vieram repudiar as atuações e finalidades dos seus companheiros das lutas eleitorais. Este silêncio é, pelo menos, comprometedor! Há que esclarecê-lo, há que averiguar até que ponto pode ser considerado conivência.”

Apesar dos mecanismos usados pelo regime para viciar o processo eleitoral e do desfecho da candidatura de Norton de Matos, a verdade é que a possibilidade de “um golpe de Estado constitucional”, ainda que meramente técnica, como Salazar admitira (15), gerou preocupações no seio do regime. Por exemplo, em março de 1950, durante a discussão da proposta de antecipação da revisão constitucional, Artur Marques de Carvalho acentuou a importância de blindar a Constituição contra esse tipo de ameaças, e, cerca de um ano mais tarde, já durante o debate de revisão constitucional propriamente dito, Abel de Lacerda sugeriu que fossem as duas câmaras legislativas a elegerem o Presidente da República. Porém, o método de eleição presidencial só foi alterado após as eleições de 1958, quando a campanha eleitoral de Humberto Delgado fez estremecer o regime, passando a ser da responsabilidade de um colégio eleitoral. Por essa altura, já o General Norton de Matos havia morrido (1955), aos 87 anos de idade, em Ponte de Lima, onde nascera.

Ricardo Revez

(1) Em entrevista publicada no Diário de Notícias e n’O Século, a 14 de novembro de 1945.
(2) Para este parágrafo, cf. Fernando Rosas, O Estado Novo (1926-1974), vol. VII de História de Portugal (dir. de José Matoso), [s. l.], Editorial Estampa, 1998, p. 335-337; Fernando Rosas, Salazar e o Poder. A arte de saber durar, Lisboa, Edições Tinta-da-China, 2013, p. 229-230; Mário Soares, Portugal amordaçado. Depoimento sobre os anos do fascismo, [s. l.], Editora Arcádia, 1974, p. 95-96, p. 103-103.
(3) Cf. Mário Soares, op. cit., p. 142.
(4) Cf. Mário Soares, op. cit., pp. 142-144.
(5) Cf. Armando B. Malheiro da Silva, “A candidatura à Presidência da República do General Norton de Matos e o Boletim Eleições Livres no Distrito de Braga (1949)”, in Norton de Matos e as eleições presidenciais de 1949. 60 anos depois, (coord. de Heloísa Paulo e Helena Pinto Janeiro), Lisboa, Edições Colibri, 2010, p. 66.
(6) Cf. General Norton de Matos, Os dois primeiros meses da minha candidatura à Presidência da República, Lisboa, Edição do autor, 1948, p. 31-32, p. 34-36.
(7) Cf. Helena Pinto Janeiro, Mário Soares, “Um jovem comunista em campanha por Norton: entrevista a Mário Soares, 60 anos depois”, in Norton de Matos e as eleições presidenciais de 1949. 60 anos depois, p. 97-98.
(8) Cf. Mário Soares, op. cit., p. 146.
(9) Cf. General Norton de Matos, op. cit., pp. 76-83.
(10) Cf. General Norton de Matos, op. cit., p. 86.
(11) Cf. General Norton de Matos, Mais quatro meses da minha candidatura à Presidência da República, Porto, Edição do autor, 1949, p. 113.
(12) Para este parágrafo, cf. General Norton de Matos, Os dois primeiros meses…, p. 63-69; Mário Soares, op. cit., p. 146, p. 151-152; Luís Reis Torgal (coord.), Mário Matos e Lemos, Oposição e eleições no Estado Novo, Lisboa, Assembleia da República, 2012, p. 70-102, p. 133-134.
(13) Para este parágrafo, cf. Filipe Ribeiro de Meneses, Salazar. Uma biografia política, 4.ª edição, Alfragide, Publicações Dom Quixote, 2010, p. 418-419, p. 421-422; Mário Soares, op. cit., p. 154, p. 156, p. 159-160.
(14) Cf. Mário Soares, op. cit., p. 157.
(15) Num discurso proferido no Palácio da Bolsa, no Porto, no dia 7 de janeiro de 1949.

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