A crítica da 1ª Plataforma antes de 25 de Novembro de
1975
O Sr. Sottomayor Cardia (PS) ([2][1]): - Sr. Presidente, Srs. Deputados: Tenho confiança
em que será bem compreendida a razão por que decidi intervir antes da ordem do
dia para me ocupar de matéria directa e rigorosamente constituinte.
Sob minha pessoal, integral e
directa responsabilidade, quero suscitar nesta tribuna, que é o lugar adequado,
um problema que reconheço envolver real melindre. O problema é o da latitude de
funções que o texto constitucional haverá de atribuir ao Movimento das Forças
Armadas.
Em Fevereiro de 1975 tomou o MFA a
iniciativa de convocar os partidos políticos então legalmente constituídos para
lhes apresentar um conjunto de propostas sobre a institucionalização do poder
militar. Os contactos prosseguiram após a crise constitucional de 11 e 12 de
Março e concluíram na assinatura solene, se bem me lembro, em 10 de Abril, da
Plataforma de Acordo Constitucional.
O objectivo lato consistia em
assegurar a continuidade do MFA no período constitucional, contrariamente ao
que se encontrava disposto no Programa da MFA. Mas para além dessa desejável
continuidade, uma ideia fundamental inspirou o texto: durante mais três a cinco
anos, o MFA actuaria como motor da Revolução Portuguesa.
Por motivos patrióticos que o País
compreendeu, o Partido Socialista aceitou subscrever o pacto. E uma coisa há
que posso aqui afirmar sem sombra de hesitação: enquanto estiver efectivamente
em vigor, o Partido Socialista respeitará o compromisso assumido.
Vozes:
- Muito bem!
O Orador: - O meu partido tem por regra honrar os compromissos
assumidos.
Posto isto, entendo ser lícito e
oportuno expor à consideração do País, da Assembleia Constituinte e mais
precisamente do MFA algumas breves reflexões sobre a vantagem prática, para a
ordem constitucional e para o MFA, de consagrar definitivamente certas
disposições.
Prescindirei agora de argumentos
doutrinários e dispensar-me-ei por isso de anotar os contrastes entre
disposições do pacto e a concepção democrática de organização do poder político.
Quero limitar-me a formular algumas,
poucas, observações de ordem pragmática. Se as disposições da pacto forem
integralmente constitucionalizadas, a instituição militar mandatará 240 (num
máximo de 490) grandes eleitores do Presidente da República, e o Conselho da
Revolução exercerá, entre outras, funções de senado, tribunal constitucional e
conselho de Estado.
Nos meses que se seguiram à
Revolução, o MFA garantiu o curso democrático. Não dispunham as forças
políticas civis de suficiente audiência, organização e representatividade para
actuar como factores bastantes de democratização da sociedade portuguesa. Em
contrapartida, o MFA exercia o poder militar, beneficiava de prestígio e
autoridade incomparáveis, realizava uma síntese democrática unitária e
suprapartidária.
Prevaleceu, posteriormente, no MFA
uma orientação que o levou a atribuir-se, não já a função de garante da
democratização, mas de motor da socialização. Na verdade, se a pretensão era em
si mesma quase original, não creio que na prática, se tenha revelado feliz.
Desde princípios de Setembro é patente que a concepção do MFA motor foi
superada.
De qualquer modo, a situação
presente é muito diversa da que se viveu nas fases iniciais da Revolução.
Infelizmente, a audiência e autoridade do MFA sofreram quebra dramática. A
síntese democrática suprapartidária sucedeu, no meio militar, um confronto
público entre correntes de opinião semelhante às que partidariamente dividem a
sociedade civil.
E de tal modo se deteriorou a
disciplina que a operacionalidade da instituição militar gravemente se diluiu.
Por outro lado, e felizmente, os partidos revelaram-se substancialmente aptos
a assegurar a condução dos destinos do País.
Salvo melhor opinião, a grande
tarefa histórica do MFA no momento actual consistirá em reconstruir as
condições materiais de exercício da autoridade do Estado.
Vozes:
-
Muito bem!
O Orador: - Todos reconhecerão que não é empresa menor, mas
responsabilidade de primeira grandeza.
Na verdade, o Governo carece da
necessária autoridade tão-somente porque não dispõe de instrumentos eficientes
no plano militar e para militar. É aí que o MFA deve intervir como garante do
exercício da autoridade democrática.
O MFA reunirá tanto mais favoráveis
condições de êxito na batalha da autoridade quanto mais seguramente conseguir
impermeabilizar-se às influências partidárias.
No plano pragmático, um problema se
me afigura capital na apreciação do papel que constitucionalmente deve
atribuir-se ao MFA. Se a Assembleia do MFA participar no colégio eleitoral do
Presidente da República e se o Conselho da Revolução for câmara legislativa e
tribunal constitucional o MFA envolver-se-á inevitável e definitivamente nos
conflitos e nas oposições interpartidárias. E cabe aqui perguntar: poderá a
restauração da instituição militar ser empreendida por um MFA exposto ao
desgaste da política corrente e corroído pelas divisões inerentes à acção
política?
Em sociedade pluralista, poderá a
instituição militar, sem prejuízo da disciplina própria, suportar uma campanha
eleitoral intensa para a Presidência da República?
Em sociedade pluralista, poderá a
instituição militar, sem prejuízo da disciplina própria, suportar o exercício
do poder legislativo pelo seu órgão supremo?
Em sociedade pluralista, poderá a
instituição militar, sem prejuízo da disciplina própria, acumular o exercício
do poder legislativo e a jurisdição sobre a: constitucionalidade do País?
E poderá alguma instituição humana,
sem quebra de prestígio, exercer simultaneamente as funções de senado e
tribunal constitucional?
Foi o Partido Socialista o primeiro
a propor a institucionalização constitucional do MFA. No congresso de Dezembro
de 1974 foi aprovada, na sequência do relatório do secretário-geral, uma moção
favorável à institucionalização do MFA no futuro quadro constitucional. No
programa então aprovado foi mesmo adiantada a proposta de criação de um
Conselho Nacional de Defesa das Liberdades Públicas em que o MFA estaria
presente. Não pretendo que essa fórmula, seja hoje a melhor. Recordo o
congresso do meu partido unicamente para documentar a atenção que há muito os
socialistas dedicam a este problema.
Admito que a conjuntura
político-militar não seja favorável à revisão do pacto. Mas como civil
preocupado com o futuro das forças armadas, permito-me pedir a atenção dos
responsáveis militares, em cuja maioria me é grato declarar que deposito
efectiva confiança.
Vozes:
- Muito bem!
O Orador: - A minha modesta mas sincera opinião é que o pacto não
serve o MFA nem a autoridade do Estado
Vozes:
- Muito bem!
O
Orador: - ... para além de, em princípio,
não servir a democracia ou o socialismo.
Não quero alongar-me nestas
considerações. Mas entendi que algum Deputado deveria levantar publicamente a
questão, ao menos no plano pragmático. Espero que ela possa ser analisada com
realismo e sem paixão. Mas se o pacto não puder ser revisto, faço votos por que
a experiência venha a mostrar que não tinham fundamento as minhas apreensões.
Aplausos.
Vozes:
- Muito bem!
([1]
) Diário da Assembleia Constituinte, n.º
78, de 8 de Novembro de 1975, pp. 2574 e 2575.
Já em 7 de Agosto de 1975 o
Deputado Freitas do Amaral (CDS) preconizara a reabertura de conversações
entre o MFA e os partidos, tendo nomeadamente em vista a revisão do Pacto por
acordo entre todos. V. Diário da
Assembleia Constituinte, n.º 28, de 8 de Agosto de 1975, p. 706.