A LEI DAS OITO HORAS DE TRABALHO (1919)


Em 1919, a medida laboral com mais impacto social foi o decreto das oito horas de trabalho, que foi uma das principais reivindicações operárias da época.

Placas

“Ilustração Portuguesa”, n.º 690, 12 de maio de 1919, p. 374, Hemeroteca Municipal de Lisboa.

No início de dezembro de 1918, uma análise realista feita ao sindicalismo português não poderia deixar de concluir que a sua situação era de grande debilidade. O ano tinha sido particularmente duro, sobretudo a partir de abril/maio, com o regime sidonista a reprimir greves, a proibir comícios, a assaltar e encerrar sedes sindicais, e a prender e enviar para o degredo para cima de um milhar de ativistas operários, tudo isto num quadro de agravamento geral das condições de vida e de uma gravíssima epidemia de gripe pneumónica. Porém, a partir do momento em que, no serão do dia 14 de dezembro, Sidónio Pais tombou na Estação do Rossio, tudo iria mudar, e 1919 inauguraria o triénio da Primeira República no qual o movimento operário conheceria maior vigor e dinamismo reivindicativo.1

 

Diversos fatores contribuíram para que tal sucedesse. Desde logo, o espaço de oportunidade surgido nos meses em que decorreu o processo de retorno à ordem constitucional pré-1918, após a dominação da ameaça monárquica e o afastamento definitivo dos sidonistas do poder. Enquanto o Partido Democrático, beneficiando do enfraquecimento e desunião da direita republicana, procura reconstituir o seu poder na «rua» e no aparelho de Estado, o movimento operário aproveita para se reorganizar. É assim que, no campo da propaganda, nasce o jornal diário A Batalha, que em pouco tempo se tornará num dos mais vendidos no país. A rede de secções sindicais também cresce significativamente, tal como as adesões de sindicalizados, e, já mais tarde, em setembro, é fundada a Confederação Geral do Trabalho. Em simultâneo, há que ter em conta a conjuntura internacional favorável, com a formação da Terceira Internacional, com a Rússia e a Hungria em pleno processo revolucionário, e vários outros países europeus a conhecerem um assinalável crescimento da força do movimento operário, quando não, mesmo, tentativas revolucionárias. Inevitavelmente, este contexto transmitia ao operariado português confiança e otimismo, alicerçados também no papel determinante que este tinha tido no debelar da revolta monárquica em Lisboa, quando participara no assalto ao Monsanto ao lado das milícias e dos militares republicanos. Finalmente, refira-se, também, que a principal motivação da luta operária, o aumento dos salários, se tinha tornado uma necessidade ainda mais premente devido aos efeitos nefastos da Grande Guerra nas finanças e economia nacionais.2


HML

Consequentemente, no início de abril irrompem greves nos mais diversos sectores da indústria e serviços: no Barreiro, os operários da Companhia União Fabril (CUF) e os corticeiros; em Lisboa, os estofadores, metalúrgicos, cesteiros, alfaiates, bombeiros, funcionários da Carris e da Companhia das Águas, bem como de outros serviços da Câmara; no Porto, metalúrgicos, corticeiros, e funcionários da Câmara. Outras zonas do país que não as tradicionalmente com maior população operária, tanto a Norte, como a Sul, são igualmente afetadas. Toda esta agitação social e demonstração de força por parte das organizações sindicais leva a que os republicanos percebam que, se querem conter o movimento operário e mantê-lo do seu lado, têm que fazer cedências. Um primeiro passo nesse sentido já havia sido dado quando Augusto Dias da Silva se tornara no primeiro ministro do Partido Socialista num Governo republicano, o Executivo liderado por José Relvas, tendo a seu cargo a pasta do Trabalho. Quando, no final de março, Relvas foi substituído pelo democrático Domingos Pereira, Dias da Silva manteve-se no elenco governativo. É certo que a influência dos socialistas no movimento sindical era muito diminuta, mas a sua linha moderada e a tendência maioritária dos seus membros para aceitarem a participação no jogo político-partidário fazia com que aparecessem aos olhos dos republicanos como os parceiros ideais no objetivo de acalmar e controlar os ímpetos mais radicais de um operariado em que imperavam as ideias anarquistas, conquistando-o para soluções reformistas. O entendimento entre republicanos e socialistas conduziria, mesmo, a que o Partido Socialista conseguisse oito deputados nas eleições legislativas de 11 de maio, graças, sobretudo, ao auxílio da máquina eleitoral do Partido Democrático. Mas a mais importante cedência republicana foi permitir que Dias da Silva legislasse, de facto, enquanto Ministro do Trabalho, e que o fizesse com genuíno espírito reformista. Desse modo, no início de maio, ainda antes das eleições, foi promulgado um conjunto de medidas inovadoras no âmbito social e laboral: o estabelecimento das oito horas de trabalho diário, a construção de bairros sociais em Lisboa, a criação de Bolsas de Trabalho, e a instituição de seguros sociais obrigatórios em caso de invalidez, velhice, sobrevivência, doença e acidentes de trabalho.3

 

A medida com mais impacto social foi, sem dúvida, o decreto (com valor de lei) das oito horas de trabalho, que tinha constituído uma das principais reivindicações operárias nos meses de março e abril. Os sindicalistas tinham promovido uma intensa campanha de pressão para a adoção das oito horas, culminando, no 1.º de Maio, num comício com cerca de 30 000 pessoas no Parque Eduardo VII, enquanto que, em paralelo, o patronato reagira negativamente à possibilidade do Governo avançar com a lei.4 Os protestos iriam ter o seu efeito junto do Governo, mas não no imediato, e a lei foi mesmo aprovada em Conselho de Ministros. Segundo o seu texto,5 o período máximo de trabalho diário dos «trabalhadores e funcionários do Estado, das corporações administrativas e do comércio e indústria» não poderia ultrapassar as oito horas diárias, nem as quarenta e oito horas semanais, com exceção dos «empregados de estabelecimentos de crédito, de câmbio e de escritórios», cujo limite máximo de trabalho se ficava pelas sete horas diárias. No caso do trabalho em ambientes «insalubres ou tóxicos», previa-se, ainda, a redução do número de horas por «decreto devidamente fundamentado». Para precaver retaliações ou transgressões do patronato, proibia-se a diminuição dos salários vigentes como reação às disposições da nova lei e concebia-se um sistema de fiscalização da sua aplicação, com as infrações a serem penalizadas com multas. O trabalho extraordinário deveria ser pago a dobrar nos sectores do comércio e indústria, e estabelecia-se a obrigatoriedade de organizar turnos e períodos de descanso em trabalhos que, pela sua especificidade assim o exigissem.

 

Na altura da sua promulgação, a 7 de maio, já o tempo de Dias da Silva no Governo tinha chegado ao fim. O ministro socialista apresentara a demissão por discordar com a forma como o seu colega António Maria Baptista, ministro da Guerra, tinha ordenado a perseguição e prisão indiscriminada de operários sob a acusação de serem os responsáveis por um incêndio de grandes dimensões que havia deflagrado no edifício das Encomendas Postais, no Terreiro do Paço, no dia 2.6 Por essa razão não é o nome de Dias da Silva que figura entre os assinantes do decreto, mas o do Ministro da Agricultura, Jorge Nunes, homem da direita republicana, que passou a substituí-lo interinamente na pasta do Trabalho e, desse modo, subscreveu o diploma numa dupla condição. Esta alteração terá facilitado a decisão do Governo de, na véspera das eleições de 11 de maio, decretar a suspensão da lei por trinta dias, de modo a que pudesse ser devidamente regulamentada. Entre as justificações apresentadas estava o reconhecimento de que o prazo estabelecido para a entrada em vigor da lei era demasiado apertado.7 Porém, o motivo fundamental era bem claro: as insistentes reclamações das associações patronais. Um mês depois, o Governo voltava a adiar a regulamentação da lei por mais trinta dias, invocando as «reclamações constantes que continuam a afluir a este Ministério por parte das classes interessadas» e a dificuldade em reunir a comissão encarregada da tarefa.8

 

A verdade é que, terminada a nova prorrogação do prazo, nada fora feito, e a regulamentação só chegaria no final de um verão marcado por uma enorme agitação social. Até lá, os protestos e ameaças de boicote por parte do patronato continuariam. Em julho, a Associação Comercial de Lojistas de Lisboa, através do seu boletim, afirmava que era impossível qualquer acordo acerca do regime das oito horas, visto considerá-lo «fundamentalmente inaceitável».9 Já antes, a Associação Industrial Portuguesa elaborara uma proposta de alteração, mas a boa vontade escondia, na realidade, uma maneira hábil de contornar o limite das oito horas diárias.10 Na Câmara dos Deputados, Dias da Silva e António Maria Baptista reavivavam o conflito que os opusera quando eram colegas de Governo, com o último a desabafar «que muitos desses operários que reclamam oito horas de trabalho, nem quatro horas, muitas vezes, se dispõem a trabalhar. Fazem o que querem! Não têm ordem; não têm disciplina!». Dois dias depois, o Deputado socialista Manuel José da Silva declarava: «Decretou-se há pouco no nosso país a lei das 8 horas de trabalho; porém o que não se decretou foram medidas acessórias para tornar praticável e viável essas leis na mesma forma como existe na Inglaterra, na América, e atualmente na Suécia, isto é, por meio de contratos coletivos de trabalho, medida sem a qual a lei das oito horas de trabalho não pode ser eficaz. Em Portugal nada disso se tem feito; não se removeram os obstáculos que poderiam surgir e dificultar a lei, de maneira que temos as oito horas de trabalho decretadas, mas não tendo na presente ocasião a menor exequabilidade [sic]». E, no início de setembro, o então Chefe do Governo, Alfredo Ernesto de Sá Cardoso, numa intervenção a propósito da crise de bens de primeira necessidade, mostrava que, no seio dos republicanos, não havia unanimidade em relação aos benefícios da lei das oito horas: «eu devo dizer que também o aumento de salários e a diminuição das horas de trabalho são fatores que contribuem para a crise que atravessamos. Ninguém quer trabalhar, mas todos querem ganhar mais! Nas oito horas de trabalho, não se faz quase nada. Trabalha-se hoje menos nas oito horas do que dantes se trabalhava numa hora; e os governos também têm tido algumas culpas neste assunto.»

 

O regulamento, assinado pelo novo Ministro do Trabalho, José Domingues dos Santos, seria finalmente promulgado a 23 de setembro, embora, pelo seu caráter experimental, tivesse uma validade de apenas seis meses. Apesar do preâmbulo referir que haviam sido «ouvidas todas as entidades e classes interessadas no assunto e devidamente ponderados os seus alvitres e reclamações»,11 o decreto foi mal recebido pelo patronato. Talvez por isso, a execução do regulamento foi suspensa até 1 de novembro. Em outubro, foi enviada uma representação ao Parlamento, assinada por meia centena de associações industriais e comerciais, pedindo a reformulação da lei do horário de trabalho. A sua voz na Câmara dos Deputados foi António Aboim Inglês, do recém-criado Partido Republicano Liberal, então presidente da Associação Industrial Portuguesa, que apresentou um requerimento na tentativa de levar a discussão da revisão da lei ao Parlamento. No seu discurso, recorreu a um dos pontos principais da argumentação habitualmente usada pelo patronato para atacar a lei, a de que esta seria destrutiva para a economia nacional e desencadearia um enorme «desarranjo social». O requerimento foi rejeitado, e a lei e o seu regulamento passariam mesmo a vigorar pelos seis meses seguintes.


“Ilustração Portuguesa”, n.º 690, 12 de maio de 1919, p. 374, Hemeroteca Municipal de Lisboa.

No entanto, os deputados socialistas logo constataram que a existência de uma lei e a sua real aplicação no quotidiano eram duas coisas bem diferentes. Logo a 10 de novembro de 1919, Dias da Silva questionava Sá Cardoso: «Como pode um operário sustentar a sua família com o salário que hoje ganha e que em média não excede 1$50? E se isto é assim, se o operário não ganha para comer, como se pode admitir que esses mesmos operários, exaustos de energia por falta de alimentação, tenham de trabalhar como forçados, 10, 12 e 14 horas por dia? Nestas condições como se pode admitir que havendo uma lei das 8 horas de trabalho não se cumpra? Dessa lei ri-se a indústria não a cumprindo. Pode S. Ex.ª dizer que ignora o que se passa na província, o que não se pode admitir é que ignore o que se passa em Lisboa onde essa lei é constantemente desrespeitada porque o próprio Governo é cúmplice, porque até hoje não se tem interessado pelo seu cumprimento, como se não tem interessado pelo desenvolvimento da indústria, porque não se tem interessado para que duma vez para sempre termine a escravatura branca que existe neste país. […] Não se pode admitir que a toda a hora, a todo o momento essa lei seja desrespeitada. A lei tem de se cumprir.»

 

O epílogo desta história conta-se em poucas linhas. No ano e meio que se seguiu, os socialistas confrontaram repetidamente os vários Governos, quer com o facto de muitos patrões não estarem a respeitar a lei, quer com a aparente falta de vontade, ou capacidade, em pôr cobro a tais práticas, quer ainda com a ambiguidade legal que se criara a partir do momento em que o período experimental terminara e nada fora feito. Isso explica que, em maio de 1921, Manuel José da Silva ainda tenha sentido a necessidade de interpelar Domingues dos Santos, entretanto regressado ao cargo de Ministro do Trabalho, para tentar perceber se a lei ainda vigorava, ou não. Por fim, em julho de 1922, o Governo de António Maria da Silva promulgou a aprovação definitiva da lei das oito horas, introduzindo, todavia, algumas modificações que flexibilizavam o regulamento no comércio e indústria, e permitiam, desse modo, que o patronato tivesse margem legal para escapar ao limite diário estipulado no diploma.12 Com efeito, segundo a historiadora Ana Catarina Pinto, «na prática, o cumprimento da lei nunca foi uniforme, dependendo, em larga medida, da força do operariado organizado em cada sector de atividade e região do país».13 O Estado Novo, em decreto de agosto de 1934, manteria o limite das oito horas de trabalho,14 e, em 1962, seria obrigado a estendê-lo, também, ao trabalho nos latifúndios do Sul, após uma longa luta de cinco anos por parte dos trabalhadores agrícolas do Alentejo e Ribatejo.15

 

 

Ricardo Revez

 

 

 

 

1 - Para este parágrafo, cf. António José Telo, Primeira República II – Como Cai um Regime, Lisboa, Editorial Presença, 2011, pp. 52-59; cf. João Freire, «A Contestação ao Regime Republicano durante a Primeira República», in A República Ontem e Hoje, (coordenação científica de António Reis, Lisboa, Edições Colibri / Fundação Mário Soares / Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa, 2002, p. 68.

 

2 - Para este parágrafo, cf. João Freire, op. cit., p. 69; cf. António José Telo, Decadência e Queda da I República Portuguesa, vol. 1, Lisboa, A Regra do Jogo, 1980, pp. 143-146; cf. Fernando Medeiros, A Sociedade e a Economia Portuguesas nas Origens do Salazarismo, Lisboa, A Regra do Jogo, 1978, p 158; cf. Ana Catarina Pinto, A Primeira República e os Conflitos da Modernidade (1919-1926): a Esquerda Republicana e o Bloco Radical, Casal de Cambra, Caleidoscópio, 2011, p. 57.

 

3 - Para este parágrafo, cf. António José Telo, Decadência e Queda da I República Portuguesa, vol. 1, pp. 146-147, 149, 178-179; cf. Fernando Medeiros, op. cit., p. 163; cf. Ana Catarina Pinto, A Primeira República e os Conflitos da Modernidade (1919-1926)…, pp. 57-58; cf. David Pereira, As Políticas Sociais em Portugal (1910-1926), tese de doutoramento em História Económica e Social Contemporânea, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas – Universidade Nova de Lisboa, outubro de 2012, p. 331.

 

4 - Cf. Fernando Medeiros, op. cit., p. 163; cf. António José Telo, Decadência e Queda da I República Portuguesa, vol. 1, p. 150.

 

5 - Cf. Decreto n.º 5516, in Diário do Governo, 1.ª Série, n.º 95, 7 de maio de 1919, pp. 750-751.

 

6 - Cf. David Pereira, op. cit., p. 331; cf. Maria Máxima Vaz, Augusto Dias da Silva. O Sonho e a Obra, Loures, Câmara Municipal de Loures, s. d., p. 29.

 

7 - Cf. Decreto n.º 5634, in Diário do Governo, 1.ª série, suplemento ao n.º 98, 10 de maio de 1919, pp. 1023-1024.

 

8 - Cf. Portaria n.º1837-A, in Diário do Governo, 1.ª série, 7.º suplemento ao n.º 114, 16 de junho de 1919.

 

9 - Ana Catarina Pinto, A Primeira República e os Conflitos da Modernidade (1919-1926)…, p. 58, em que se cita o Boletim da Associação Comercial de Lojistas de Lisboa, 4.ª série, n.º 1, Julho de 1919, pp. 4-5.

 

10 - Cf. Ana Catarina Pinto, A Luta de Classes em Portugal (1919-1926): a Esquerda Republicana e o Bloco Radical, tese de doutoramento em História Contemporânea, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas – Universidade de Lisboa, novembro de 2016, pp. 76-77.

 

11 - Cf. Decreto n. º 6121, in Diário do Governo, 1.ª série, n.º 193, 23 de setembro de 1919, pp. 2014-2019

 

12 - Cf. David Pereira, op. cit., pp. 357-358.

 

13 - Ana Catarina Pinto, A Luta de Classes em Portugal (1919-1926): a Esquerda Republicana e o Bloco Radical, p. 79.

 

14 - Cf. João José Abrantes, «O Direito do Trabalho do Estado Novo», in Cultura. Revista de História e Teoria das Ideias, vol. 23, 2006, p. 29.

 

15 - Cf. António Gervásio, «A Conquista das 8 Horas pelo Proletariado Agrícola do Sul em 1962», in AA. VV., De Pé Sobre a Terra. Estudos sobre o Trabalho e o Movimento Operário em Portugal, (org. de Bruno Monteiro e Joana Dias Pereira), 2013, pp. 1217-1221.



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