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PATRIMÓNIO


BIBLIOTECA DAS CORTES

XAVIER, Alberto – Estatuto dos funcionários: justificação jurídico-política da questão : projecto-lei. Lisboa : Portugal-Brasil, 1922. 129 p. Cota: 13/22.

«A ideia dum estatuto dos funcionários tornou-se viável, em vista da transformação operada nas velhas conceções do Estado e da Soberania. É no interesse do serviço público que o Estatuto deve ser estabelecido. Os funcionários encontrarão nele garantia segura contra o perigo das influências políticas e eleitorais, das intrigas de classe, do arbítrio dos chefes e governantes. A República agravou o mal-estar individual no seio do funcionalismo, a indisciplina e a anarquia nos serviços, pelo abuso do favoritismo e das nomeações ilegais. Se se quer restabelecer a sinceridade das instituições republicanas e a moralidade do regime, é mister fazer crer aos funcionários que a República reclama deles o lealismo e não o servilismo. De todas as reformas que os homens de consciência e de fé no ideal republicano possam conceber, nenhuma será mais salutar e fecunda do que a reforma destinada a proteger os funcionários com um estatuto».

É com base nestas linhas de força que o deputado António Maria Eurico Alberto Fiel Xavier, nascido em Nova Goa em 1881, formado em Direito e com vasta colaboração na imprensa periódica, inicia a sua justificação jurídico-política para a apresentação de um projeto de lei tendente à aprovação do Estatuto dos Funcionários. A iniciativa surge no último mandato deste deputado, já com um extenso currículo: havia sido eleito nas eleições extraordinárias de 1913, em 1915 e em 1919 (pelo Partido Democrático), em 1921 e em 1922 (já pelo Partido Reconstituinte), sempre pelo Círculo Eleitoral de Estremoz. Um percurso parlamentar que seguiu a par de uma carreira no funcionalismo público e com a ocupação de altos cargos: desde 1919 era Secretário-Geral do Ministério das Finanças e Diretor Geral da Fazenda Pública e, em 1924, foi Administrador Geral da Casa da Moeda; já no Estado Novo, manteve-se próximo do poder, exercendo os cargos de Juiz Conselheiro do Tribunal de Contas, Comissário-Adjunto do Governo na Companhia dos Caminhos de Ferro Portugueses, Presidente do Conselho Fiscal da Caixa Geral de Depósitos, Crédito e Previdência e das Lotarias da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa.

Segundo o próprio, a necessidade era urgente, para «assegurar o bom funcionamento dos serviços públicos conferindo aos funcionários uma situação legal permanente, insuscetivel de ser modificada por um ato de vontade individual, pelo arbítrio, pelo capricho». Uma proteção ao funcionário, que pusesse fim à discricionariedade, movida por interesses políticos e eleitorais, nos atos de nomeação, suspensão, transferência, promoção ou demissão, mas que, mais do que corresponder aos interesses diretos e imediatos da classe, fosse uma defesa do interesse do serviço público.

O balanço feito pelo autor da experiência de governação republicana em Portugal revela deceção e justificaria, por si só, a crise do funcionalismo: «são inúmeras as reformas dos serviços públicos que foram decretadas e considerável o número dos novos serviços criados», mas «as carreiras públicas são completamente desacreditadas, os serviços numerosos e mal executados devido à falta de proteção contra as arbitrariedades de poder, os apetites insaciáveis da sua clientela, as exigências ocultas, dissolventes e funestas dos senhores eleitores.» E acrescenta: «as funções públicas, instituídas para o bem-estar e prosperidade da nação, nós as temos convertido em objeto de tráfico e de corrupção entre os senadores, os deputados, os influentes eleitorais, os ministros e os demais representantes de poder».

A moralização da administração pública passaria, assim, pela adoção de um Estatuto dos Funcionários, definidos como «todo o agente que participa do funcionamento de um serviço público de uma maneira permanente e normal». Um Estatuto que lhes reconhecesse «certos direitos capazes de assegurarem a sua independência moral e material» e, ao mesmo tempo, impusesse «certas obrigações especiais a que de resto não estão sujeitos os particulares». Um Estatuto que previsse as situações do presente, antevendo as futuras. E que comportasse em si as várias dimensões fundamentais que regem a atividade: «a nomeação, o recrutamento, as condições de promoção e de capacidade, a ação disciplinar, a garantia de recurso contra o arbítrio, o direito de associação e outros direitos cívicos, os direitos civis e políticos».

Os exemplos internacionais atestavam a complexidade para se conseguir unanimidade em torno de um documento desta natureza, persistindo a sua discussão na ordem do dia: o autor relata com algum pormenor a situação em França e Bélgica (com projetos ainda em discussão), Itália, Inglaterra, Alemanha e Estados Unidos da América (já com consagração legislativa). Mas, em Portugal (se excetuarmos o Regulamento Disciplinar dos Funcionários Civis, aprovado por Decreto de 22 de Fevereiro de 1913) o que se observava é que a questão não havia sido ainda «objeto […] de qualquer medida concreta originada em iniciativas quer por parte dos ministros, quer por parte dos membros do Parlamento», nem «se criou ainda um movimento de opinião digno de nota, mesmo entre os próprios interessados»: «os funcionários em Portugal não estão unidos para a defesa dos seus interesses e parece não terem compreendido que a reação contra os abusos que as exigências eleitorais engendram, só será possível quando se compenetrarem bem de que os serviços públicos foram instituídos no interesse da colectividade, da nação e não como meio de os governantes satisfazerem os seus apetites políticos e aumentarem a sua clientela».

Pontuam algumas exceções: em 1912, «uma voz sincera e autorizada se erguia das cadeiras do poder para afirmar que considerava indispensável promulgar “o estatuto dos funcionários, pelo menos na parte que trata dos vencimentos, horas de serviço obrigatório, sistemas de admissão, seleção e promoção, de forma a eliminar os incapazes e incompetentes” ». Tratava-se de Vicente Ferreira, então Ministro das Finanças, na apresentação do relatório sobre a situação financeira do país, em sessão da Câmara dos Deputados de 25 de novembro de 1912. 

Terá sido secundado, nesta convicção, por individualidades republicanas como o «propagandista e doutrinário Sr. Dr. João de Menezes, como o antigo deputado e antigo ministro da justiça Sr. Dr. Mattos Cid, como o deputado e jornalista Sr. Dr. Brito Camacho». Em termos de posicionamento dos partidos em defesa da criação do Estatuto, há a destacar uma resolução do Partido Republicano Português, no seu Congresso na Figueira da Foz, em 1914, ou o manifesto eleitoral do Partido Republicano de Reconstituição Nacional, em 1921.

Primeira página do jornal O Mundo, de 30 de julho de 1922

Primeira página do jornal O Mundo, de 30 de julho de 1922

O projeto de lei de Alberto Xavier, com 47 artigos distribuídos por 7 capítulos, foi admitido em sessão de 31 de julho de 1922 da Câmara dos Deputados e remetido para a Comissão de Administração Pública. Não existem registos de que tivesse vindo a ser discutido ou que houvesse qualquer seguimento na tramitação.

Dois anos mais tarde, na sessão de 20 de março de 1924, seria apresentado pelo ministro das Finanças, Francisco Gonçalves Velhinho Correia, um projeto de lei visando a regularização da vida económica do País e da situação financeira do Estado, habilitando o Governo a tomar um conjunto de medidas. Entre elas, lê-se: «Será decretado um estatuto dos funcionários civis do Estado, regulando os seus deveres e os seus direitos, e, duma maneira especial, o regime da sua admissão, promoção e acesso, direitos civis e políticos, graus de hierarquia e as suas responsabilidades, competência e ação disciplinar».

Em todo o caso, não foi a I República a resolver esta lacuna.

João Carlos Oliveira

A obra de Alberto Xavier fica agora disponível, em formato digital, em https://catalogobib.parlamento.pt:82/images/winlibimg.aspx?skey=&doc=46543&img=32327&save=true.


A Biblioteca Passos Manuel tem vindo a digitalizar títulos que se encontram em domínio público, quer provenientes da coleção da Biblioteca das Cortes, quer pertencentes a espólios à sua guarda. Os exemplares digitalizados ficam disponíveis em acesso público, universal e gratuito a partir do catálogo bibliográfico, do Registo Nacional de Objetos Digitais e da Europeana. Nesta secção destacam-se alguns desses títulos.



PEÇA DO MÊS | O SOL QUANDO GIRA É PARA TODOS


Desenho de Nikias Skapinakis, adquirido em 1998, no âmbito da exposição comemorativa do 50.º aniversário da Declaração Universal dos Direitos do Homem.

Trata-se de um desenho a lápis de carvão com colorido a lápis de cor sobre papel retangular disposto na horizontal, dobrado e vincado ao meio, com marca de agrafo central (indicando ter sido folha de papel destacada do centro de um caderno liso), não emoldurado. A composição pictórica concentrada na metade direita do suporte (página direita), tem esquadria desenhada a lápis de carvão e figuração colorida no seu interior, em tons de verde, amarelo, castanho e vermelho, representando um girassol, à esquerda, e um pequeno sol vermelho no canto superior direito. Contém a inscrição a lápis de carvão, avivado a lápis de cor vermelha, por debaixo do desenho: «O SOL QUANDO GIRA, É PARA TODOS». Fora da esquadria, no canto inferior direito há vários riscos de experimentação cromática de lápis em laranja, púrpura, negro, castanho, amarelo limão, magenta, azul cerúleo, verde vivo, cinzento e vermelho.