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A ADMISSÃO DAS INICIATIVAS LEGISLATIVAS


A análise do cumprimento dos requisitos regimentais e constitucionais

«Compete ao Presidente da Assembleia da República quanto aos trabalhos da Assembleia da República:

(…)

c) Admitir ou não admitir os projetos e propostas de lei ou de resolução, os projetos de deliberação, os projetos de voto e os requerimentos, verificada a sua regularidade regimental, sem prejuízo do direito de recurso para o Plenário;»

Regimento da Assembleia da República, Artigo 16.º, n.º 1, alínea c)

«No prazo de dois dias úteis após a entrada da iniciativa, é elaborada uma nota de admissibilidade sobre o cumprimento, pelos projetos e propostas de lei, dos requisitos formais de admissibilidade previstos na Constituição e no Regimento.»

Regimento da Assembleia da República, Artigo 125.º, n.º 2


A admissão de uma iniciativa legislativa pelo Presidente da Assembleia da República é a primeira etapa relevante do processo legislativo, após apresentação da mesma. Perante a apresentação de uma iniciativa legislativa à Assembleia da República, é necessário avaliar se a mesma cumpre os requisitos regimentais e constitucionais para a sua admissão. O incumprimento destes requisitos pode levar à não admissão da iniciativa, o que implica que a mesma não avançará para a próxima fase do processo legislativo, nomeadamente o seu debate e votação.

Alguns dos requisitos constitucionais e regimentais aferidos para a admissão da iniciativa são a proibição de renovação de projetos e propostas de lei definitivamente rejeitados na mesma sessão legislativa e a chamada «lei-travão», que impede a apresentação de iniciativas que envolvam, no ano económico em curso, um aumento das despesas ou uma diminuição das receitas do Estado previstas no Orçamento.

De entre os requisitos regimentais e constitucionais em causa, destaca-se como o de mais difícil análise a não admissão de iniciativas que infrinjam a Constituição ou os princípios nela consignados.

Neste contexto, a análise sobre a violação de regras ou princípios constitucionais pode incidir sobre situações bastante evidentes – como a proibição de penas com caráter perpétuo ou a exclusividade de competência do Governo para legislar sobre a sua orgânica e funcionamento –, mas também sobre questões menos claras – separação e interdependência de poderes, segurança jurídica, princípio da proporcionalidade.

A análise destes requisitos é realizada pelos serviços da Assembleia da República – através de uma nota de admissibilidade 1, com base na qual o Presidente da Assembleia da República decide pela admissão ou não da iniciativa.

A admissão de uma iniciativa significa que a mesma avançará para a próxima fase do processo legislativo, ao contrário de uma iniciativa legislativa rejeitada, que não chega a ser discutida pelos Deputados.

Assim sendo, o exercício do poder de não admissão de uma iniciativa legislativa pelo Presidente da Assembleia da República pode ser sensível, especialmente quando confrontado com o exercício do direito de iniciativa legislativa dos Deputados, tendo em conta que este poder decorre apenas do Regimento da Assembleia da República e não da Constituição.

Apesar da possibilidade de qualquer Deputado recorrer desta decisão do Presidente da Assembleia da República, na proposta remetida ao Presidente da Assembleia da República no sentido da não admissão de uma iniciativa, é sempre ponderado o facto de essa proposta poder constituir uma restrição do poder de iniciativa dos Deputados. Procura-se, assim, não limitar excessivamente esse poder e a subsequente possibilidade de debater, alterar e votar a iniciativa, pelo menos na sua primeira fase (generalidade).

O entendimento que tem presidido à elaboração da nota de admissibilidade é, assim, o de privilegiar a admissão das iniciativas ainda que as mesmas suscitem dúvidas relativamente à sua conformidade com a Constituição, pelo que apenas é proposto ao Presidente da Assembleia da República rejeitar uma iniciativa perante uma inconstitucionalidade manifesta, que se considere não ser passível de correção ou alteração ao longo do processo legislativo e que se reporte ao núcleo essencial da iniciativa.

E, de facto, são raras as situações em que uma iniciativa não foi admitida ao abrigo do incumprimento de requisitos constitucionais 2, permitindo-se assim salvaguardar o debate político e a avaliação da iniciativa pelo seu mérito substancial – que implica uma análise subjetiva no contexto das diferenças político-ideológicas –, exprimindo-se essa avaliação na votação da iniciativa.

Por último, note-se que a mais recente alteração ao Regimento da Assembleia da República parece adicionar um novo elemento de instabilidade a este panorama, ao passar a prever a possibilidade de o relatório da comissão (fase de generalidade) incluir conclusões sobre a iniciativa reunir ou não «condições constitucionais e regimentais para agendamento para debate na generalidade em Plenário», que serão comunicadas «ao Presidente da Assembleia para efeitos de admissão ou não de iniciativas que infrinjam a Constituição.»

Ou seja, parece abrir-se portas a que a decisão de admissão de uma iniciativa, já tomada pelo Presidente da Assembleia da República, possa ser revista, caso a comissão entenda que a iniciativa não reúne os requisitos constitucionais para ser ou permanecer agendada para Plenário. Esta nova decisão será sempre passível de recurso para Plenário.

Além de constituir um momento adicional em que o exercício do poder de iniciativa dos Deputados pode vir a ser limitado, esta nova faculdade da comissão levanta outras preocupações:

- A instabilidade e incerteza para a agenda do Plenário daqui resultante;

- A eventualidade de uma problematização jurídica ser transformada em conclusões taxativas de inconstitucionalidade;

- A possibilidade de uma maioria conjuntural decidir sobre a discussão em Plenário de uma iniciativa de outro partido – recordando, neste contexto, que o Presidente da Assembleia da República, no momento da admissão, está numa posição de equidistância e imparcialidade;

- As possíveis incoerências de análise nos diferentes relatórios, nomeadamente quando perante iniciativas semelhantes os relatórios concluem de forma diversa 3.

Em conclusão, a proposta de admissibilidade de uma iniciativa, enquanto condição para o agendamento, debate e votação, é um momento que pode envolver uma difícil problematização jurídica, sendo que a proposta de não admissão é ponderada tendo em conta a salvaguarda do poder de iniciativa dos Deputados e a preferência pelo debate do mérito da iniciativa, princípios a ter em consideração em todo o processo legislativo.



Ana Lia Negrão, Patrícia Pires, Vasco Cipriano

[1] Disponibilizada na página da respetiva iniciativa no site oficial da Assembleia da República, após a decisão do Presidente da Assembleia da República.

[2] De entre as raras situações de não admissão, destacam-se os Projetos de Lei n.º 481/XIV/1.ª – «Estabelece um número máximo de Ministros no Governo da República», 482/XIV/1.ª – «Circunscreve o exercício dos cargos de Primeiro-Ministro, Ministros e Secretários de Estado, apenas a indivíduos portadores de nacionalidade portuguesa originária em equiparação ao que acontece para a função presidencial», e 198/XV/1.ª - «Prevê a pena de prisão perpétua para crimes de homicídio praticados com especial perversidade, nomeadamente contra crianças», que foram objeto de despacho de não admissão, por manifesta inconstitucionalidade.

[3] Foi este o caso recente do Projeto de Lei n.º 876/XV/1.ª - «Pela liberdade de escolha da creche» e do Projeto de Lei n.º 877/XV/1.ª - «Inclui crianças com ambos os pais a desenvolverem atividade profissional nos critérios de acesso às creches gratuitas», sendo que o texto deste último foi substituído após a aprovação do relatório da comissão.