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Em Portugal os orçamentos fazem-se muito baratos e as obras muito caras


O transporte ferroviário foi objeto de debate parlamentar desde o período da monarquia constitucional até à atualidade. A primeira referência que se encontra a caminhos de ferro é na Câmara dos Deputados da Nação Portuguesa, em 1827, aquando da apresentação de um projeto de lei destinado a premiar os Autores ou Introdutores de novos Inventos, contudo, só 29 anos depois seria inaugurado o primeiro troço que ligava Lisboa ao Carregado.

Nos anos seguintes são lançados concursos, aprovada legislação e construídos novos troços ferroviários. O caminho de ferro que liga o Barreiro a Faro entra ao serviço na segunda metade do século XIX. Para o efeito foi inicialmente contratada uma empresa inglesa. Entre 1861 e 1864 o caminho de ferro chega sucessivamente ao Barreiro, a Vendas Novas, Évora e Beja. As linhas são concessionadas à empresa inglesa sendo depois, em 1868, avaliada a concessão, dada a situação da empresa. É neste contexto que a 4 de agosto de 1868 o deputado Belchior Garcez1 discursa na Câmara dos Deputados da Nação Portuguesa. 

Segundo explica, está contra contratar-se novos caminhos de ferro porque, em seu entender, o estado financeiro do país não o permite. No entanto, «quando os contratos são celebrados, quando o parlamento os aprova, a imprensa os aplaude e o país os recebe com alegria», dispõe-se a aceitar as alterações necessárias para tornar realizáveis projetos, ainda que tenham sido mal calculados.

Questiona também os complexos cálculos feitos antes de cada contratação referindo que «se eu fizesse aqueles cálculos em relação, por exemplo, aos presidentes de conselhos de ministros, poderia provar que Portugal não pode ter presidentes de conselhos (risos), e até provaria que Portugal não pode ter deputados (risos), porque o subsídio dos deputados representa um juro composto no fim de alguns anos, uma quantia avultada (risos)».

Estava então em causa a construção de 119 quilómetros de caminho de ferro, que continuaria de Évora em direção a Estremoz, permitindo a junção da rede dos caminhos de ferro de sudoeste com a rede dos caminhos de leste e norte. Reconhece, entretanto, que «quando se atira um caminho de ferro para o meio de um povo, este fica alguns anos a olhar para ele sem saber o que há de fazer desse caminho, nem para que ele pode servir-lhe».

E conta o seguinte episódio:

«Quando se fez o caminho de ferro do Barreiro a Vendas Novas, fui eu um dia, como ia quase todos os dias por motivo de serviço a Vendas Novas, e encontrei-me lá com um almocreve, que trazia uns odres de azeite para vender em Lisboa. Os machos vinham doentes, e o homem estava aflito. Condoído do pobre homem, disse-lhe: Deixe o gado em Vendas Novas, que aí lho tratam, e venha na locomotiva comigo para o Barreiro, que vem de graça. Com dificuldade aceitou a minha oferta. Veio a Lisboa, fez o seu negócio, e no outro dia voltou para Vendas Novas. Foi ter comigo e disse-me que se não tivesse presenciado o que se passou havia de dizer que era bruxaria, porque ainda que lhe abrissem a cabeça nunca poderia acreditar, se não tivesse visto, que em vinte e quatro horas se podia vir de Vendas Novas a Lisboa, vender o azeite, comprar o que se precisava e estar de volta. Mas o mais bonito é que no fim o almocreve pediu-me encarecidamente que lhe fizesse aquele favor mais alguma vez, mas só a ele; que o não fizesse a mais ninguém! (riso) Foi este almocreve o primeiro expedidor do caminho de ferro do sul».

Conclui assegurando que há motivos de força maior que levaram esta companhia à ruína e refere que todos os governos «ilustrados» do mundo, na situação em que se encontra o governo português, têm tido atenções justas e razoáveis no sentido de não deixar nunca arruinar as companhias, considerando que não deve a nação portuguesa fazer os caminhos de ferro e obter os seus melhoramentos à custa de capitais alheios.

Apesar desta intervenção, no ano seguinte é feito o resgaste compulsivo da concessão e paga uma indemnização à empresa inglesa.


Ana Vargas



[1] José Belchior Garcez (1808-1874). Eleito Deputado oito vezes, primeiro pela Feira (1858-1859) e nas restantes legislaturas por Trancoso. Ministro da Guerra em 1860. Do ponto de vista político considerava-se «adido ao partido progressista há 36 anos». In Dicionário Biográfico Parlamentar 1834-1910, vol. II, coord. Maria Filomena Mónica