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NATÁLIA CORREIA


Fajã de Baixo, São Miguel, Açores, 13 de setembro de 1923 – Lisboa, 16 de março de 1993

Citação de natália correia

Poeta, romancista, dramaturga, ensaísta, tradutora, editora, deputada, figura incontornável da segunda metade do século XX português. Torna-se impossível isolar as diferentes facetas em que Natália Correia se destacou porque todas partilhavam a mesma raiz: a mulher de causas, notável pela coragem cívica, pela lucidez interveniente, pelo sarcasmo, pela frontalidade e por um profundo e constante sentido estético e ético.

Se, como afirmou, «todos temos uma missão», Natália incluía-se no «número dos que atribuem à poesia uma enorme responsabilidade: a de transformar o mundo», já que «a poetização das coisas não é senão o aperfeiçoamento delas. É para isto que se faz poesia e não para com ela se fazer literatura». Igual perspetiva tinha da política: «A política, uma certa política, nem sempre é incompatível com a poesia, se esta está empenhada em transformar a vida. (…) O caso é que há que transformar a nossa sociedade se nos queremos salvar».

Exposta desde cedo, pela educação materna, às mais variadas expressões culturais da modernidade subversiva, do pensamento libertário e do paganismo, neles irá alicerçar não só a sua obra, mas também a sua vida. Depois, ela própria escolheu os seus mestres: «homens e mulheres que me deslumbraram em leitura e não só: em exemplos de vida». Destaca, nesse papel, os nomes de Cardoso Marta, Almada Negreiros, António Sérgio e Vitorino Nemésio.

Com o tempo, Natália acabaria por tornar-se o epicentro de tertúlias e convívios culturais e literários, lugar de debate e troca de ideias, primeiro na sua casa, na Rua Rodrigues Sampaio, depois no mítico Botequim, ao Largo da Graça, espaço que criou em 1971.

Referenciada desde cedo pela PIDE como «elemento adversário das Instituições» e «elemento de destaque junto das oposições», a resistência antifascista de Natália Correia expressava-se também fora da literatura: em 1945 adere ao MUD – Movimento de Unidade Democrática, apoia as candidaturas de Norton de Matos (1949) e Humberto Delgado (1958) à Presidência da República e a candidatura da CEUD – Comissão Eleitoral de Unidade Democrática às eleições legislativas (1969).

Mas foi a atividade literária e editorial a produzir o principal embate com o regime. Em novembro de 1965, saía dos prelos a Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica: dos cancioneiros medievais à actualidade, que entrava em clara rota de colisão com a moral imposta pelo regime. Natália Correia assume a autoria do prefácio, a seleção e anotação dos textos, numa edição com chancela da Afrodite, de Fernando Ribeiro de Melo, com ilustrações de Cruzeiro Seixas.

A alegada imoralidade do livro não passou no crivo da censura, que logo em dezembro de 1965 determina a sua «proibição rigorosa» pelo «caráter pornográfico» dos textos e a «falta de escrúpulos» na sua seleção. Sob acusação de «abuso de liberdade de imprensa», Natália viria a integrar, em 1969, o conjunto de «presumíveis delinquentes» levados a julgamento por envolvimento na obra e que incluía os escritores antologiados Mário Cesariny de Vasconcelos, Luiz Pacheco, José Carlos Ary dos Santos e E. M. de Melo e Castro e o editor Fernando Ribeiro de Melo. Após 3 dias de julgamento à porta fechada saía condenada a 90 dias de prisão, com pena suspensa.

A Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica não seria a sua única obra proibida pelo regime. Aliás, Natália Correia foi a escritora portuguesa com mais obras censuradas: ao caso apresentado juntam-se os livros de poemas Comunicação (1959) e O Vinho e a Lira (1966), bem como as peças de teatro O Homúnculo (1965), A Pécora (1967) e O Encoberto (1969). Também envolto em polémica viria a estar o livro Novas Cartas Portuguesas – de Maria Teresa Horta, Maria Isabel Barreno e Maria Velho da Costa, visadas no mediático processo d’As Três Marias –, editado em abril de 1972 pela Estúdios Cor, da qual Natália Correia era, então, diretora literária.

Após o 25 de Abril de 1974, e depois de uma primeira experiência como consultora para os Assuntos Culturais Internos da Secretaria de Estado da Cultura (em 1976), Natália assumiu a participação política com novos contornos cedendo, como escreveu num seu diário, à «inferioridade» de se ligar a um partido. Integrou as listas do PSD por Lisboa, conseguindo a sua eleição como Deputada nas I e II Legislaturas (1979-1980; 1980-1983). Será novamente eleita Deputada na V Legislatura (1987-1991), então já nas listas do PRD, como independente.

fotografia de natália correia a discursar na assembleia

© Rui Homem, Arquivo DN, Global Media Group

Num país politicamente bipolarizado entre esquerda e direita, era um posicionamento partidário que muitos consideravam desconcertante, tendo em atenção o seu passado antifascista, mas com que Natália Correia ironizava: «um antifascista não está bem sentado na bancada de um partido social-democrata? Ora vejamos, nunca pertenci à oposição marxista. Nessa altura, a oposição não tinha rótulos.» Se considerava que «os partidos são um defeito necessário, porque dividem, mas é uma divisão necessária para agrupar, para reunir a ideia da democracia parlamentar que temos», afirmava, em contraponto, que «as minhas exigências estéticas e éticas não tornam muito fáceis as minhas relações com a classe política», declarando-se «imprestável para partidos. (...) Só aceito a disciplina quando me demonstram que ela é uma necessidade ética ou criadora. Quando não mo demonstram, não aceito.» Ao assumir não ser «uma pessoa de decisiva vocação partidária», foi na natureza «religante» da Cultura que Natália conseguiu o fundamento para um mandato «supra-partidário» e com um reconhecido estatuto de autonomia porque, como defendia, «a cultura tem razões a que a política, se é minimamente idónea, terá que ceder».

Assim se explica que, no limite, Natália Correia recusasse que a passagem pela Assembleia da República fizesse dela uma política: «Eu nunca abri a boca no Parlamento para falar de política… Falo de cultura. Se você me disser que a política tem de ser vigiada pela cultura, então falo de política, falando de cultura». Por isso, também, abandonou o Parlamento quando achou que o devia fazer, «porque já não estava a fazer nada, era uma pessoa desnecessária».

Mesmo nas bancadas da oposição era reconhecido o traço distintivo que Natália trazia para dentro do hemiciclo: «quando ela entrava sabia-se que algo de novo, de bem informado, de poético, de transgressor, de desafiante, de culturalmente superior ia acontecer», recorda Mário Tomé, deputado da UDP.

A atividade parlamentar de Natália Correia ficará associada a intervenções marcantes nos campos da Cultura, da defesa dos direitos das mulheres e dos direitos humanos, em cumprimento de um mandato autoassumido de «defender um estatuto cultural na Assembleia da República». Natália trouxe a poesia para o Parlamento e marcou-o com a sua irreverência e com o seu génio. «Se quiser respondo em verso», terá sugerido numa interpelação.

Exemplo paradigmático foi a resposta poética a João Morgado, Deputado do CDS, durante o primeiro debate sobre a legalização do aborto, em sessão plenária de 2 de março de 1982. Discutia-se o Projeto de Lei n.º 309/II/2, apresentado pelo Grupo Parlamentar do PCP, que viria a ser rejeitado na votação de 11 de novembro seguinte, sendo Natália Correia a única deputada do PSD a votar favoravelmente.

O Deputado interpelou Zita Seabra, que havia feito a apresentação do projeto: «A Igreja Católica proíbe o aborto exatamente porque entende que quando se pratica o ato sexual é para se ver o nascimento de um filho». A história viria a fixar versão bem mais prosaica que, de resto, o Deputado recusou liminarmente ter pronunciado, em entrevista ao Diário de Lisboa em 11 de março: «O ato sexual é para fazer filhos».

cópia manuscrita pela própria de poema ao morgado

Poemas Parlamentares 1980-1984: Truca-truca, Natália Correia,
autógrafo (cópia), 1982, Col. Particular/p>

A resposta de Natália não tardou, manuscrita em papel timbrado da Assembleia da República, na forma de um poema dedicado a Morgado, que a própria fez distribuir e que terá feito rir todas as bancadas parlamentares, antes de se tornar do conhecimento público, em 5 de março de 1982, por iniciativa do mesmo jornal:
«Já que o coito – diz Morgado –
tem como fim cristalino,
preciso e imaculado
fazer menina ou menino;
e cada vez que o varão
sexual petisco manduca,
temos na procriação
prova de que houve truca-truca,
sendo pai de um só rebento,
lógica é a conclusão
de que o viril instrumento
só usou – parca ração! –
uma vez. E se a função
faz o órgão – diz o ditado –,
consumada essa excepção,
ficou capado o Morgado.»

No ano em que se assinala o Centenário do Nascimento de Natália Correia, a Assembleia da República, através da sua Biblioteca, entendeu assumir o propósito de adquirir a obra completa da autora, nas edições originais. Oportunidade para homenagear Natália Correia e para enriquecer o espólio da Biblioteca Passos Manuel com a obra de uma das figuras mais marcantes da cultura portuguesa contemporânea.

Embora seja mais reconhecida a sua produção poética, a carreira literária de Natália Correia começou na ficção com uma primeira narrativa infantil – Grandes Aventuras de um Pequeno Herói (1946) –, à qual se seguiu, no mesmo ano, o romance Anoiteceu no Bairro. Também em 1946, publicou no jornal Portugal, Madeira e Açores o seu primeiro poema Manhã Cinzenta. O primeiro livro de poemas – Rio de Nuvens – surgiu em 1947 e neste género literário viria a publicar depois Poemas (1955), Dimensão Encontrada (1957), Passaporte (1958), Comunicação (1959), Cântico do País Emerso (1961), O Vinho e a Lira (1966), Mátria (1968), As Maçãs de Orestes (1970), A Mosca Iluminada (1972), O Anjo do Ocidente à Entrada do Ferro (1973), Poemas a Rebate (1975), Epístola aos Iamitas (1978), O Dilúvio e a Pomba (1979), O Armistício (1985), Os Sonetos Românticos (1990) e a sua antologia poética, em dois volumes, O Sol nas Noites e o Luar nos Dias (1993).

A obra ficcional é retomada em 1968 com o romance A Madona, a que se seguem A Ilha de Circe (1983), As Núpcias (1992) e o livro de contos Onde está o Menino Jesus? (1987).

Para teatro, escreveu a peça não publicada Sucubina ou a Teoria do Chapéu (1952), seguindo-se O Progresso de Édipo (1957), D. João e Julieta (de 1959, apenas editada em 1999), O Homúnculo (1965), O Encoberto (1969), Erros Meus, Má Fortuna, Amor Ardente (1981) e A Pécora (escrita em 1967, só editada em 1983).

Na vertente ensaística, publicou Poesia de Arte e Realismo Poético (1959), A Questão Académica de 1907 (em plena Crise Académica de 1962), Uma Estátua para Herodes (1974) e Somos Todos Hispanos (1988).

Num registo mais autobiográfico, editou em 1951 Descobri que era europeia: impressões de uma viagem à América e, como testemunho do primeiro ano de Democracia, Não percas a rosa: diário e algo mais (25 de Abril de 1974 – 20 de Dezembro de 1975), publicado em 1978.


João Carlos Oliveira