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AQUI CONSPIRA-SE CONTRA A LIBERDADE


Imaginem que o Sr. Bordalo Pinheiro era preso e “durante esse período tinha de aprender um ofício que lhe garantisse, depois da soltura, uma vida honesta!”.

Este foi um dos argumentos utilizados pelo Deputado Manuel de Arriaga para contestar a proposta de lei de reforma penal, que visava alterar o Código Penal de 1852, apresentada em 1884, pelo Ministro da Justiça, Lopo Vaz de Sampaio e Melo.


Hemeroteca Municipal de Lisboa, O António Maria, n.º 254, 10 abril 1884.

O discurso, longo e contundente, foi proferido nas sessões de 5 e 16 de abril de 1884, mas publicado apenas no Diário das Sessões de 16 de maio de 1884.

Entre as várias questões que a reforma suscita, a que merece maior crítica do Orador tem a ver com o facto de o julgamento, bem como o necessário despacho de pronúncia, passar a competir ao juiz correcional, naquilo que considera ser uma ampliação dos poderes deste face a uma redução da prerrogativa do júri. Manuel de Arriaga considera que quando se conspira contra a liberdade conspira-se contra a instituição do júri que a garante.

Discorda do julgamento de determinados crimes, designadamente os de opinião e consciência, por juízes, formados pelo poder executivo, em detrimento do julgamento feito por iguais, sem formação específica.

No entender do Orador: “Sempre que surge a liberdade, surge como companheira inseparável, a instituição do júri; sempre que se conspira contra aquela; sempre que se tenta restringi-la e cerceá-la: restringem-se e cerceiam-se as atribuições deste; e quando a reação vitoriosa a suplanta, o júri desaparece com ela”. 

Justifica a sua posição mencionando os crimes de consciência e de opinião e exemplifica com o processo intentado contra Bordalo Pinheiro, a propósito da imitação da ceia de Leonardo da Vinci, que foi considerada como uma injúria feita a um objeto de culto.


Hemeroteca Municipal de Lisboa, O António Maria, n.º 149, 6 abril 1882, pp. 4-5.

“Levanta-se no comissariado da polícia um auto sobre as supostas injúrias ao trono e ao altar; ouvem-se uns agentes da autoridade que nada entendem de crítica; e assim com a maior facilidade e sem cerimónia deste mundo fica constituído o corpo de delito, sobre o qual há de basear-se o despacho de pronúncia, e pouco depois a sentença condenatória! Um horror!

Na questão da ceia do Senhor os peritos e as testemunhas partiram da ideia falsa de que a obra de Vinci é um quadro sagrado que faz parte do culto religioso, e que a imitação do mesmo constitui uma ofensa à religião e conjuntamente segundo me pareceu uma ofensa à realeza!...

Todos sabem hoje que o quadro da ceia de Vinci foi pintado pelo inspirado mestre na sala do refeitório, de um convento; que, com o andar dos tempos as gerações degeneradas d'esse convento, profanaram-no abrindo nele uma porta para pôr em comunicação mais direta a cozinha com o refeitório!

O sr. Fuschiní: - Abriram-na entre as pernas do Jesus.

O Orador: - É exata a observação do sr. Fuschini! Como vedes os verdadeiros profanadores do quadro foram aqueles que provavelmente classificariam de injuriosa para o culto a imitação ou paródia do mesmo!...


Hemeroteca Municipal de Lisboa, O António Maria, n.º 199, 22 março 1883, pp. 4-5.

Afirmando as testemunhas no corpo do delito que o réu Bordalo Pinheiro ofendeu publicamente a religião do estado, quer quando fez a paródia, do citado quadro, quer quando na hipótese acima indicada fez a crítica dos abusos do culto católico: entregue em tais condições ao juízo correcional, há tudo a recear de que este, em harmonia com o seu despacho de pronúncia, dê o crime como provado; e que usando de toda a clemência para com o revoltado espírito de crítico, o sujeite com piedade (…) à pena correcional de pouco mais de um ano!”

Apesar das vozes discordantes e das críticas feitas, a proposta de lei foi aprovada a 14 de junho do mesmo ano.

Rafael Bordalo Pinheiro foi absolvido do processo instaurado pela Igreja. Dias depois da absolvição publicou de novo a última Ceia, só que desta feita ocupa o lugar de Cristo e encontra-se rodeado de juízes e polícias.





Ana Vargas