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PATRIMÓNIO


BIBLIOTECA DAS CORTES

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ASSOCIAÇÃO INDUSTRIAL PORTUGUESA – A questão do horario de trabalho : representação entregue ao Governo em 30 de Setembro de 1919 pelas Associações Industriais e Comerciais do País. Lisboa : Typ. da Emprêsa Diario de Noticias, 1919. 13 p. Cota: 280/1900 (5863-5880).

A revolução industrial representou uma mudança total de paradigma no mercado de trabalho. O aumento de produção teve como resultado um crescimento da população sem precedentes, particularmente acentuado nas cidades, fruto de migrações internas. Nas zonas urbanas, massificou-se uma classe proletária sem qualquer meio de subsistência para além da sua força de trabalho. O trabalho, encarado como mercadoria, passou a corresponder a um preço – o salário – sujeito às leis da oferta e da procura.

A ameaça de uma gestão arbitrária por parte da nova classe capitalista industrial suscitou nos governos a consciência da necessidade de proteção do trabalho subordinado. Em Portugal, remonta ao final do século XIX a primeira legislação de resposta à tutela dos direitos destes trabalhadores, cobrindo questões como a inspeção das condições de trabalho ou a higiene e segurança no trabalho.

Mas só em 1916, já sob regime republicano, foi criado o Ministério do Trabalho e Previdência Social. Três anos mais tarde, em 7 de maio de 1919, era decretada a jornada de trabalho de 8 horas para os trabalhadores do comércio e da indústria. O Decreto n.º 5516, cujas disposições deveriam entrar em vigor dez dias depois da sua publicação em Diário do Governo, afirmava no seu artigo 1.º: «O período máximo do trabalho diário, quer seja diurno, nocturno ou mixto, dos trabalhadores e empregados do Estado, das corporações administrativas e do comércio e indústria, com excepção dos rurais e domésticos, do continente da República e ilhas adjacentes, não poderá ultrapassar oito horas por dia, nem quarenta e oito horas por semana». Contemplava outros aspetos: a possibilidade da redução do horário nos trabalhos insalubres ou tóxicos (artigo 2.º); as interrupções e pausas no trabalho para descanso (artigo 5.º); o pagamento em dobro do trabalho extraordinário (artigo 12.ª); ou a proibição de diminuição dos salários e remunerações em função da diminuição do horário de trabalho.

A adoção da jornada de 8 horas representou um importante avanço civilizacional. Teve, por outro lado, um peso simbólico: foi em luta pela jornada de 8 horas de trabalho que se organizaram as greves e manifestações de maio de 1886 em Chicago, cuja repressão levaria à morte de trabalhadores, e em homenagem aos quais seria criado, três anos depois, o Dia do Trabalhador, fixado a 1 de maio.

Esta conquista não pode ser dissociada da intensa atividade sindical dos primeiros anos do novo regime, materializada em 1914 na criação da União Operária Nacional, à qual sucedeu, em 1919, a Confederação Geral de Trabalhadores. Neste mesmo ano, Portugal constituiu-se como membro fundador da Organização Internacional do Trabalho (OIT).

A medida não deixou de ser contestada por alguns setores, pelo que, logo em 10 de maio, o Decreto n.º 5634 veio suspendê-la por 30 dias, atendendo a que «o prazo marcado no decreto […] foi tam limitado que dificulta a sua aplicação», e que se tornava «necessário estudar detidamente as várias reclamações que ao Govêrno têm sido presentes, quer pela classe patronal quer pelas classes operárias», já que ao Governo competia «harmonizar as justas pretensões das classes trabalhadoras com os legítimos interesses da classe patronal, de forma a tornar viável o horário de trabalho». Só em 23 de setembro, pelo Decreto regulamentar n.º 6121, o Governo entendeu terem sido «ouvidas todas as entidades e classes interessadas no assunto e devidamente ponderados os seus alvitres e reclamações», aprovando então o projeto de regulamento do diploma de 7 de maio, que deveria entrar em plena execução no dia 1 de outubro seguinte.

Mas a sociedade portuguesa parecia não estar ainda pacificada em torno da questão do novo horário de trabalho. Demonstrativo disso é a publicação que destacamos hoje, que apresenta, sob a chancela da Associação Industrial Portuguesa, a representação entregue ao Governo, em 30 de setembro de 1919, pelas associações industriais e comerciais do país, contestando a adoção do horário das 8 horas, e na qual são expostas as «consequências gravíssimas para o nosso país de se efectivar a redução do período de trabalho» já que, como se alega, «a experiência está feita, à redução do tempo do trabalho, de 10 para 8 horas, corresponde uma redução proporcional de produção», e isto por um benefício de alcance questionável, já que «10 horas é, na maioria dos casos, um período de duração de trabalho perfeitamente suportável e compatível com as condições do esforço humano», não se podendo «equiparar e considerar como se iguais fossem todos os trabalhos.»

Na sua linha de raciocínio, «o “deficit” entre o que o país produz e o que o país consome é enorme; nestas condições, produzir menos, é aumentar esse “deficit”», agravar o câmbio, desvalorizar a moeda e, consequentemente, diminuir o poder de compra dos cidadãos, fruto de uma espiral inflacionária. Isto, afirmam, «é o encarecimento da vida sem limites, isto é um mal irreparável, especialmente para as classes trabalhadoras que menos recursos têem, e cujas condições de vida se agravam precisamente pela efectivação de medidas que pretendendo lisongeá-las fundamentalmente as prejudicam», criando-se um «circulo vicioso em que encarecemos a coisa por causa do braço que a produz, em que aumentamos o salário porque a coisa indispensável ao braço encarece!» Anteviam a precipitação para «um cataclismo económico e social», e a abertura de um precedente que convidava a futuras reivindicações: «atrás do operário das cidades virá o trabalhador dos campos reclamar também esse horário de trabalho, depois passar-se-à a reclamar as 7 a não sabemos se até as 6…». Em último recurso, alegam que o Decreto ditatorial deveria ser discutido e revisto pelo Parlamento, cuja reabertura aconteceria numa questão de dias, para ganhar nova legitimidade como «Lei do Horário de Trabalho».

João Carlos Oliveira

O exemplar presente na coleção da Biblioteca Passos Manuel, está disponível em cópia digital.

A Biblioteca Passos Manuel tem vindo a digitalizar títulos que se encontram em domínio público, quer provenientes da coleção da Biblioteca das Cortes, quer pertencentes a espólios à sua guarda. Os exemplares digitalizados ficam disponíveis em acesso público, universal e gratuito a partir do catálogo bibliográfico, do Registo Nacional de Objetos Digitais e da Europeana. Nesta secção destacam-se alguns desses títulos.