" />

Património


BIBLIOTECA DAS CORTES | “BASES DA CONSTITUIÇÃO” (1821)

Bases da constituição Portugueza aprovadas em sessão de Côrtes do dia 9 de Março e juradas no 29 do mesmo mez : dedicadas a S. M. F. o Senhor D. João VI rey do reino unido de Portugal, Brazil e Algarve. [S.l. : s.n.], 1821. 20 p. Cota: 8/1821

«Declara a Nação em massa a necessidade de uma Constituição,
e quem teria o direito de lha dar, senão ela a si mesma?»

Francisco José de Almeida, Introducção à convocação das Cortes debaixo das condições do juramento prestado pela nação, 1820, p. 19.

O processo de mudança política que resultou na Revolução Liberal, que eclodiu na cidade do Porto em 24 de agosto de 1820, tinha como princípio basilar uma nova relação entre governantes e governados, que consubstanciou a necessidade de uma lei fundamental: a Constituição. Esta «protege os Direitos do homem, e não só é a sua mais segura garantia, mas estabelece, e fixa em vigor de Leis esses mesmos Direitos» (Francisco José de Almeida, op. cit., p. 9).

Essa dinâmica, de resto, marcava a conjuntura internacional de então. Citem-se os exemplos que mais influência tiveram na redação da Constituição de 1822: a Constituição Política Francesa (1791) e, na vizinha Espanha, a Constituição de Cádis (1812).

Em Portugal, feita a Revolução, o cumprimento do programa revolucionário avançou para o processo eleitoral que iria definir o elenco de deputados às Cortes. País ainda pluricontinental, «os deputados efetivos totalizaram 181, sendo 100 do Continente, 9 das ilhas adjacentes, 7 dos territórios de África e Ásia e 65 do Brasil, a que acresceram 65 substitutos (34 do continente, 3 das ilhas adjacentes, 2 dos territórios de África e Ásia e 26 do Brasil)» (cf. Joel Timóteo Ramos Pereira, A deputação de Pernambuco nas Constituintes de 1821-1822, p. 136).

Competia às Cortes a prossecução de dois objetivos principais: a elaboração e aprovação das Bases da Constituição, o que aconteceu logo em 9 de março de 1821, um mês e meio depois do início dos trabalhos, em 26 de janeiro, e a elaboração e aprovação da Constituição Política da Monarquia Portuguesa, o que aconteceu em 23 de setembro de 1822. Até à adoção do texto constitucional definitivo, as Bases da Constituição vigoraram provisoriamente, como documento norteador da atividade legislativa que as mesmas Cortes também assumiram, o que justifica a sua designação como Cortes Gerais, Extraordinárias e Constituintes. Isto constituiu «um procedimento inédito e que não voltou a repetir-se». De acordo com Jorge Miranda, «mais nenhuma Assembleia Constituinte portuguesa voltaria a usar técnica idêntica» (Manual de Direito Constitucional, Tomo I: preliminares, o estado e os sistemas constitucionais, 7.ª ed., pp. 267, 268).

Diplomas legais emblemáticos da rutura com o antigo regime aconteceram precisamente ao abrigo das Bases da Constituição. Um dos mais expressivos é o de extinção do Santo Ofício da Inquisição, em 31 de março de 1821, que fixa expressamente no seu preâmbulo: «As Cortes Gerais Extraordinárias e Constituintes da Nação Portuguesa, considerando que a existência do Tribunal da Inquisição é incompatível com os princípios adoptados nas Bases da Constituição, decretam o seguinte…». O mesmo se aplica à lei da Liberdade de Imprensa, promulgada a 12 de julho de 1821, em cujo preâmbulo se lê: «As Cortes Gerais, Extraordinárias e Constituintes da Nação Portuguesa, querendo desenvolver, e determinar os princípios que sobre a Liberdade de Imprensa estabelecerão nos artigos oitavo, nono e décimo das Bases da Constituição, por conhecerem que aquela Liberdade é o apoio mais seguro do Sistema Constitucional, decretam o seguinte…».

Essa importância das Bases da Constituição no processo de instauração da nova ordem liberal justifica a escolha do título para o destaque deste mês. A edição de que dispomos, sem local de edição, inicia com uma dedicatória a D. João VI, datada de Londres, 13 de maio de 1821, que nos revela ter sido iniciativa particular de “um português, que ama verdadeiramente a sua Pátria». A estrutura do documento obedece a uma divisão em duas grandes secções, agregando cada uma delas os princípios considerados «mais adequados para assegurar os direitos individuais do Cidadão, e estabelecer a organização e limites dos Poderes Políticos do Estado».

A secção I, Dos direitos individuais do cidadão, com 15 princípios, consagra como direitos fundamentais a liberdade, a segurança e a propriedade, declinados em outros, como a livre comunicação dos pensamentos, a liberdade de imprensa, a igualdade e proporcionalidade das leis, a igualdade na admissão a cargos públicos, ou a inviolabilidade da correspondência.

A secção II, Da Nação Portuguesa, sua Religião, Governo e Dinastia, compõe-se de 22 princípios. Define a Nação como «a união de todos os Portugueses de ambos os hemisférios», a religião como Católica Apostólica Romana, o regime de governo como Monarquia Constitucional hereditária, e o regime sucessório, no seio da dinastia de Bragança, pela ordem de primogenitura. Faz assentar a soberania na Nação, e impõe à futura Constituição a separação dos poderes legislativo (atribuído às Cortes), executivo (atribuído ao Rei e ministros) e judicial (atribuído aos Juízes).

A obra pode ser consultada em formato digital.

Marco importante no processo de implantação do regime foi o do juramento das Bases da Constituição pelos deputados, membros da Regência, e outras «autoridades civis, militares, judiciais e eclesiásticas», o que veio a acontecer no dia 29 de março de 1821. Um jornal da época, Mnemosine Constitucional dá-nos no seu número de 30 de março um interessante relato da cerimónia, que passamos a transcrever:

«LISBOA 29 de Março.

Ontem decorreu pelas principais ruas desta cidade um luzido e aparatoso Bando, precedido de todas as bandas de Música dos Regimentos e Batalhões da Guarnição desta cidade, seguido de Corpos de Cavalaria, pelo qual o Senado da Câmara anunciou que hoje era o dia destinado para o juramento das Bases da Constituição; distribuindo, e tendo antes feito colocar pelas esquinas uma eloquente, enérgica, e liberal Proclamação ao nobre Povo desta capital.

Hoje no vasto e sumptuoso templo de S. Domingos, que se acha ricamente adornado de damasco, veludo, e oiro, concorreram as Cortes, a Regência, e as Autoridades Civis, Militares, e Eclesiásticas para assistirem à Missa Pontifical, que celebrou o Excelentíssimo Arcebispo da Baía, e prestarem o juramento às Bases da Constituição; o que se efetuou começando o Sacrifício Incruento pelas onze horas e meia da manhã, e acabando às três da tarde. Foi Orador o M. R. P. M. Fr. António Osório, Presentado em Teologia, da Ordem dos Pregadores, que desempenhou dignamente o assumpto da Festividade no seu eloquente discurso.

A Música é composição do nosso insigne Português João Domingos Bomtempo, feita e oferecida às Cortes para esta majestosa cerimónia, e para cujo fim veio de propósito de Inglaterra à sua Pátria. Todos os bons Professores de Música vocal e instrumental foram empregados na execução desta grande Peça de Música, além dos Senhores José Maria de Mendonça, F. R. Lahmeyer, João Marques da Silva, João Paulino Vergolino, Sebastião Duprat, António Martins, Cesário Dufourg, Caetano Martins da Silva, José del Negro, e Francisco António Drisel, que sendo diletantes, se ofereceram, e de cujo oferecimento receberão um aviso da Secretaria, aceitando e agradecendo o seu patriotismo e liberalismo. Depois da Missa seguiu-se o juramento, e neste ato subindo aos ares imensas girandolas de fogo, salvou o Castelo, que foi correspondido pelas Embarcações e Fortalezas, concluindo a função um solene Te Deum.

Para celebrar este dia, um dos mais ditosos dos Fastos Lusitanos, restituiram-se as antigas isenções que disfrutavam os habitantes desta Capital; soltaram-se muitos presos de leves crimes, e deram-se outras muitas providências, que se irão publicando nos números seguintes deste jornal, todas em benefício dos Povos do venturoso e invejado Portugal. (…)»

A Biblioteca Passos Manuel tem vindo a digitalizar títulos que se encontram em domínio público, quer provenientes da coleção da Biblioteca das Cortes, quer pertencentes a espólios à sua guarda. Os exemplares digitalizados ficam disponíveis em acesso público, universal e gratuito a partir do catálogo bibliográfico, do Registo Nacional de Objetos Digitais e da Europeana. Nesta secção destacam-se alguns desses títulos.



PEÇA DO MÊS | RETRATO DE JOSÉ DA SILVA CARVALHO (1834)

Retrato de José da Silva Carvalho (1782-1856), 1834, de José Joaquim Rodrigues Primavera (1803-1839), litografia a preto e branco s/ papel, Oficina de Maurício José do Carmo Sendim (1786-1870), 49,9 x 35,3 cm, nº inv. MAR 3082

No âmbito das comemorações do bicentenário do constitucionalismo em Portugal apresenta-se o retrato de José da Silva Carvalho, da autoria de José Joaquim Rodrigues Primavera (1803-1839) e reproduzido numa litografia da oficina de Maurício José do Carmo Sendim (1786-1870).

José da Silva Carvalho está retratado em busto, a três quartos para a esquerda, com uma expressão serena e um olhar que interpela diretamente o interlocutor. Apresenta constituição normal, veste terno composto por casaco escuro, aberto, colete escuro, fechado, camisa com folho à frente, de colarinho subido, fechado com laço escuro. O fundo é branco com sombreado.

Abaixo da figura estão duas inscrições impressas: à esquerda, «Primavera / 1834», e à direita, «O.R.L.». Em baixo está a identificação do retratado: «JOSÉ DA SILVA CARVALHO”.

Nascido a 19 de dezembro de 1782 em São João das Areias, Santa Comba Dão, e filho de humildes camponeses, foi com o apoio de uma tia-avó materna que José da Silva Carvalho frequentou o Colégio das Artes em Coimbra e, em 1800, ingressou na Faculdade de Leis, obtendo o grau de bacharel em Leis, em 1805. Em 1807 obteve aprovação com distinção no exame de acesso à magistratura e três anos depois foi colocado como juiz de fora em Recardães. Em 1814 assumiu o cargo de juiz dos órfãos do Porto.

No âmbito da sua atividade profissional desenvolveu laços de amizade com Manuel Fernandes Tomás e Ferreira Borges, seus colegas na magistratura. De acordo com as suas memórias publicadas no Memorandum, no dia 27 de dezembro de 1817, durante um passeio com Manuel Fernandes Tomás, que teve como tema de conversa a situação política nos dois países da Península Ibérica, a queda iminente de Fernando VII de Espanha e as possíveis consequências em Portugal, acordaram organizar “um partido de homens de confiança” que, quando chegasse o momento, evitasse a anarquia e pudesse “encaminhar a Revolução a um fim útil.” Foi dentro desta linha de pensamento político que Silva Carvalho, Fernandes Tomás e Ferreira Borges decidiram fundar o Sinédrio, uma associação secreta que organizou com sucesso o pronunciamento de 24 de Agosto de 1820. José Silva Carvalho integrou a Junta Provisional do Governo Supremo do Reino, a Junta Provisional encarregada de organizar as Cortes Constituintes, e foi membro do Conselho de Regência até ao regresso de D. João VI e responsável pela área da Justiça (1821-22).


Jornal A Luz, n.º 98, Ano III, de 16 de agosto de 1920

Na sequência da Vifrancada (27 de maio a 3 de junho de 1823) procurou exílio em Inglaterra, de onde regressou em 1826 após a outorga da Carta Constitucional, considerando que esta era “um vigoroso antídoto contra o veneno do absolutismo”. Após a proclamação de D. Miguel, em 1828, regressou ao exílio. Mais tarde, em Angra do Heroísmo, ao lado de D. Pedro IV, assumiu a pasta da Fazenda (1832-35; 1835; 1836), da Justiça (1832-34) e da Marinha e Ultramar (1833), sendo responsável por uma obra notável de administração e reformas legislativas durante os períodos em que exerceu funções governativas. Entre 1434 e 1836 exerceu o mandato de deputado. Foi novamente exilado devido ao Setembrismo (1836-1838) e quando regressou a Portugal voltou a ocupar o lugar de Deputado (1838-1842). Com a restauração da Carta Constitucional, Silva Carvalho foi designado Par do Reino (1842-1856), cargo que exerceu até à data da sua morte (05.09.1856). Foi ainda juiz conselheiro e primeiro presidente do Supremo Tribunal de Justiça.

A sua simplicidade levou-o a recusar um título de nobreza. O historiador e jornalista Luís Augusto Rebelo da Silva (1822-1871), referindo-se a José da Silva Carvalho, afirmou: “No seu túmulo pobre, mas armado dos brasões populares de uma larga série de serviços e de sacrifícios, fala mais alto o nome só, como elogio e epitáfio, do que uma longa série de avós esquecidos ou pior ainda do que a fatuidade de uma coroa de conde ou de marquês […]. Silva Carvalho previu que o nome lhe havia de chegar puro à posteridade como o recebera de seus pais e guardou-o com o nobre orgulho de uma grande alma.”

Iniciado na Maçonaria em data desconhecida, adotou o nome simbólico de Hydaspe, tendo integrado os quadros da Loja 15 de Outubro, nº 11, em Lisboa, da qual foi Venerável Mestre. Foi Grão-Mestre do Grande Oriente Lusitano (1823-1839) e um dos fundadores do primeiro Supremo Conselho do Grau 33, no qual exerceu o cargo de Soberano Grande Comendador até à sua morte (1841-1856).

No centenário da Constituição, Veloso Salgado pintou a luneta da Sala das Sessões, em óleo sobre tela, recriando uma sessão das Cortes Constituintes, na qual Silva Carvalho é um dos retratados. Columbano Bordalo Pinheiro homenageou José da Silva Carvalho num dos painéis que executou para a sala dos Passos Perdidos, em 1926.


 Pintura representando as Cortes Constituintes de 1821, Veloso Salgado, 1920.