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“A INQUISIÇÃO FAZIA MORTOS, A PENITENCIÁRIA FAZ DOIDOS” (1908)

A 3 de julho de 1908, em sessão da Câmara dos Deputados, o médico psiquiatra Miguel Bombarda estreou-se como orador parlamentar com uma dura crítica ao regime penitenciário português de então, justificando-a com um “dever de consciência” e um “dever de piedade”.
Retrato de Miguel Bombarda. Arquivo Histórico Parlamentar.
Um penitenciário na cela. "Ilustração Portuguesa", n.º 6, 1906, p. 185. Hemeroteca Municipal de Lisboa.
Entrada da Penitenciária de Lisboa. "Brasil-Portugal", 1 de set. 1912, p. 609. HML.
"O Ocidente", 10 abr. 1906, p. 76; 30 maio 1906, p. 116. HML.
A introdução deste regime fora prevista pela reforma penal e prisional de 1867, mas só conheceu aplicação prática quase duas décadas depois, quando, em 1885, a Penitenciária de Lisboa começou a funcionar. Em grande parte inspirado pelo sistema de Filadélfia (1), também conhecido como sistema da Pensilvânia, caracterizava-se pela sua austeridade e, na opinião de muitos, pela desumanidade com que os presos eram tratados (2). Segundo Bombarda, este sistema já era considerado obsoleto em quase toda a parte na altura em que fora adotado por Portugal, sendo, na sua opinião, o pior dos três então existentes. Nas suas palavras, “o regime celular absoluto, o nosso, é o regime do terror. O condenado vive entre as quatro paredes de uma cela, podendo ver apenas uma nesga de céu, quando não é uma parede nua, fria e dura, pela fresta aberta ao alto da sua prisão, e aí apodrece o espírito na contemplação da sua miséria, na absorção da sua desesperança. O silêncio tem de ser absoluto e a obediência cega.”

Com efeito, os presos passavam grande parte do tempo fechados nas suas celas e, quando delas saíam - por exemplo, para trabalhar, ou para assistir a aulas ou a cerimónias religiosas no anfiteatro da cadeia - usavam um capuz na cabeça e não podiam comunicar por nenhuma forma. Por essa razão, a Penitenciária de Lisboa era conhecida como a “Casa do Silêncio”. Toda a sua vida quotidiana era também rigorosamente controlada e regulamentada, e os castigos eram severos. Perante este cenário, Bombarda não resistiu a fazer comparações com as práticas da Inquisição: “A disciplina é de ferro. As faltas disciplinares são castigadas com as celas sem luz, a sepultura de um vivo, com o regime de pão e água. E um homem pode viver numa cela destas e num regime destes até dez anos da sua vida! É pior do que a Inquisição. A Inquisição torturava o corpo, a Penitenciária tortura o espírito; a Inquisição, em nome da salvação da alma na outra vida, fazia os horrores dos autos de fé, a Penitenciária, em nome da salvação da alma na vida presente, que outra coisa não é a tentada regeneração, faz outros horrores, que são o martírio de um pobre espírito abandonado aos terrores da solidão, à desesperança absoluta de alguma coisa que o possa salvar; a Inquisição fazia mortos, a Penitenciária faz doidos.”

Esta última afirmação resume a tese na base da intervenção de Miguel Bombarda, sustentada em estatísticas e na sua própria experiência enquanto diretor do Hospital (psiquiátrico) de Rilhafoles: o regime penitenciário português, tal como existia, persistindo na necessidade do isolamento, provocava doenças mentais graves nos presos. Esta era, aliás, uma luta que vinha a travar desde há mais de uma década, no âmbito da qual chegou a ter uma polémica com a outra grande figura da psiquiatria portuguesa da época, Júlio de Matos, que, ao contrário de Bombarda, desvalorizava a influência do meio prisional no desenvolvimento da loucura (3). É certo que, quando era detetada alguma perturbação mental num preso, este era enviado para Rilhafoles, porém, para o seu diretor, isso em nada o ajudava, bem pelo contrário: “Assim temos o criminoso que a Penitenciária endoideceu transferido para Rilhafoles e como em regra ele aqui não se cura, porque à uma vem tarde e à outra o meio, igualmente um encarceramento, é incompatível com a cura, o resultado é que o alienado que da Penitenciária se transfere para Rilhafoles vem aqui acabar os seus dias, vem aqui sofrer uma pena para a vida inteira. Se tais alienados pudessem entrar na vida comum, eles acabariam por se curar. […] Não é uma loucura enraizada, é uma loucura apenas aderente e que se solta facilmente logo que cesse a causa que principalmente a produziu.” Como disse no início da sua intervenção, “lançados naquele inferno, que é a cadeia celular, por uma grande parte daí saem para cair noutro inferno, que é o inferno de Rilhafoles.”

Neste sentido, Bombarda apresentou uma proposta de inquérito, propondo que se nomeasse uma comissão encarregada de estudar “os efeitos do regime penitenciário tal como é aplicado em Portugal e a necessidade de o modificar no sentido do sistema de Auburn ou do sistema progressivo”, dois sistemas que, na sua visão, eram mais eficazes e humanos, sobretudo o progressivo, ou irlandês. Este previa, por exemplo, períodos de “trabalho em meia liberdade fora da cadeia” e de liberdade condicional, bem como a redução do tempo de pena por bom comportamento. Já no filadelfiano, para o psiquiatra, “o condenado tem perdido toda a esperança de futuro que não seja o termo da pena em que foi sentenciado, e nada no mundo lhe permite abreviar um dia que seja nesse período que sobre ele pesa como uma fatalidade.” A insistência do regime penitenciário português na necessidade do condenado sentir a cada momento a culpa pelo crime que cometera levava, inclusive, a que o tempo de internamento de um preso no Hospital de Rilhafoles não contasse para o cumprimento da sua pena. Assim, e provavelmente para, pelo menos, amenizar a situação enquanto não fossem feitas alterações de fundo ao regime vigente, Bombarda lançou, ainda, um projeto de lei que modificava o artigo 114.º do Código Penal no sentido de eliminar a interrupção da execução da pena nos períodos em que o preso não estava mentalmente são, mantendo-a, apenas, para os criminosos ainda em processo de acusação. Três dias depois, na segunda leitura do projeto, acrescentaria que não existiam razões científicas ou morais para manter aquele artigo tal como existia, declarando “a pena não é castigo nem expiação.”

Em resposta a Miguel Bombarda, interveio o ministro da Justiça, Artur Campos Henriques. Embora considerando o assunto “uma questão de alta importância”, rejeitou a ideia do regime penitenciário português como uma “fábrica de loucos”, defendendo-o como um “dos mais perfeitos” e desvalorizando as estatísticas “porque seria preciso saber se a origem da loucura é, ou não, anterior à entrada na cela”. Na sua opinião, “muitas vezes são encarcerados indivíduos que se mostram violentos e insubmissos precisamente porque já estão atacados de um princípio de loucura. Os casos - diz ainda - em que a doença se manifesta posteriormente à aplicação do regime celular não são mais numerosos do que os observados nas cadeias em comum”. Apoiou-se, depois, nos trabalhos de vários congressos internacionais penitenciários recentes, como o de Estugarda, em 1903, “onde se chegara à conclusão que o regime celular não era causador de problemas físicos ou mentais nos reclusos”. Com argúcia, Campos Henriques também explorou o facto de o regime penitenciário português apresentar algumas nuances em relação ao sistema filadelfiano clássico, visto o isolamento não ser completo: “Congresso internacional penitenciário de Bruxelas, 1900. - Uma das conclusões foi que o encarceramento celular, mesmo prolongado por 10 anos e mais ainda, não tem sobre a saúde física ou mental dos reclusos nenhum efeito desfavorável que uma boa administração não possa conjurar.” Bastava que existisse “uma boa organização do trabalho profissional; Emprego tão amplo, quanto possível, dos exercícios físicos; Visitas do pessoal às celas com frequência. Tudo isto está no regulamento da Penitenciária de Lisboa, onde não há o isolamento absoluto dos presos, mas a separação entre eles, indo os mestres dos ofícios com frequência às celas, os capelães, os guardas, etc., indo a passeio todos os dias, à escola na capela, e tendo visitas das famílias, parentes, ou amigos, aos domingos.”

Miguel Bombarda fora eleito em abril desse ano de 1908 como independente próximo do Presidente do Conselho, Francisco Ferreira do Amaral, que liderava um Governo de “Acalmação”, na sequência do regicídio. A sua conhecida adesão ao Partido Republicano Português, pelo menos formal, só aconteceria dois anos mais tarde, poucos meses antes do 5 de Outubro, em cuja preparação teve papel decisivo. Isso não impediu que a sua intervenção tivesse sido efusivamente recebida pelos deputados republicanos, que o apoiaram e, no fim, segundo o jornal Vanguarda, o abraçaram (4). No entanto, essa reação terá mais a ver com o preâmbulo de Bombarda à questão do regime penitenciário, do que com este tema em si, embora também fosse querido dos republicanos (5). Naquele, o psiquiatra lançou uma crítica vigorosa ao período de governação de João Franco e referiu-se aos antigos membros do Governo franquista que eram então deputados da seguinte maneira: “e hoje ainda ousam defrontar-nos, ousam ainda, inconscientes dos seus crimes, despidos de remorso, couraçados de indiferença, ousam sentar-se entre nós, verdugos entre as suas vítimas como se fossem criminosos entre homens de bem.”

Esta atitude valeu a Miguel Bombarda o desafio para um duelo por parte do Deputado José Malheiro Reimão, antigo Ministro das Obras Públicas, Comércio e Indústria do Governo de João Franco, que se sentiu ofendido pelas suas declarações. O duelo, à pistola, ocorreu às 13 horas da tarde do dia 4 de julho, junto ao Forte de Monsanto, e a disputa resolveu-se com duas balas trocadas a vinte passos de distância, sem causar ferimentos (6).

Do resultado das duas iniciativas parlamentares de Miguel Bombarda, que foram aceites e enviadas para a Comissão de Legislação Criminal, não há rasto nos arquivos. Provavelmente terá sido ignorada pela Comissão, pois não houve sequer um parecer emitido. Mas Bombarda teria bem consciência do possível destino inglório das suas propostas. Como declarou em abril de 1909, a propósito de um outro projeto de lei da sua autoria, o da proteção dos alienados, “sei bem que o meu projeto irá acompanhar […] tantos outros que vão dormir o sono das coisas inoportunas.”

(1) Cf. Miguel Lopes Romão, Prisão e Ciência Penitenciária em Portugal, Coimbra, Almedina, 2015, p. 579.
(2) Cf. Paulo Jorge Antunes dos Santos Adriano Penitenciária Central de Lisboa. A Casa do Silêncio e o Despontar da Arquitectura Penitenciária em Portugal, dissertação de mestrado em Arte, Património e Teoria do Restauro, Universidade de Lisboa - Faculdade de Letras, Lisboa, 2010, p. 180-181.
(3) Cf. José Morgado Pereira, Psiquiatria em Portugal: Protagonistas e História Conceptual (1884-1924), tese de doutoramento em Altos Estudos em História - Ramo Época Contemporânea, Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, Coimbra, setembro de 2015, p. 284-288.
(4) Cf. “Parlamento (Crónica da Câmara dos Deputados”. Vanguarda, n.º 4121, 4 de julho de 1908, p. 1-2.
(5) Cf. Paulo Jorge Antunes dos Santos Adriano, op. cit., p. 187.
(6) Cf. “Pendência de Honra”. Diário Ilustrado, n.º 12 585, 5 de julho de 1908, p. 1.

Imagem do separador: Prisioneiro na Penitenciária de Lisboa, [19--], fotografia de António Novais. Arquivo Municipal de Lisboa | Fotográfico.
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