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"O REINO DA TRAULITÂNIA" | MONARQUIA DO NORTE (1919)

A ascensão ao poder de Sidónio Pais, em dezembro de 1917, permitiu o regresso em força dos monárquicos à plenitude da vida política nacional – de que foi sintomática a eleição de 37 deputados e uma dezena de senadores no sufrágio de abril de 1918 – e a conquista e consolidação por parte daqueles de importantes posições políticas, administrativas, e, sobretudo, militares, no seio da República sidonista (1).
Estragos causados pela artilharia republicana em vários edifícios da zona do Monsanto. "Ilustração Portuguesa", 3-2-19, p. 86, HML.
O Éden-Teatro foi um dos cenários das torturas infligidas pelos revoltosos aos presos republicanos. "Ilustração Portuguesa", 3-3-19, p. 173, HML.
Marinheiros republicanos a embarcarem para o Norte, para combaterem os revoltosos. "Ilustração Portuguesa", 10-2-19, p. 103, HML.
"O Século Cómico", 17-2-19, p.1; "O Século Cómico", 5-4-19, p. 4. HML.
O seu poder e influência foram aumentando ao longo do ano de 1918. Em novembro, atingem o seu auge, com a formação das chamadas Juntas Militares, uma em Lisboa, e outra no Porto, constituídas por oficiais, em grande parte monárquicos, com o propósito imediato de zelar pela manutenção do cariz conservador e ordeiro do sidonismo contra a ameaça da chamada "demagogia" – ou seja, do Partido Democrático de Afonso Costa – e, no caso de Sidónio "cair", organizar um Governo militar (2).  O seu objetivo último pode ter mesmo passado, desde o início, por criar condições para a restauração da Monarquia, embora esta conclusão não seja consensual entre os estudiosos (3).

Depois do assassínio de Sidónio Pais, a 14 de dezembro de 1918, a confusão e a ambiguidade instalaram-se nas fileiras políticas e militares sidonistas. Os sidonistas republicanos não queriam o regresso à "República Velha", mas temiam os monárquicos. Os sidonistas monárquicos também não queriam os democráticos no poder de novo, porém, dividiam-se quanto à atitude a tomar: ou a expectativa, apenas defendendo, à partida, a "situação", ou eventualmente aproveitar a ocasião para enveredar pela restauração. Um terceiro grupo de republicanos colocava acima de tudo a necessidade de defender a República, mesmo que isso significasse o regresso ao antigo modelo de 1911 (4).

Neste último grupo estava Francisco da Cunha Leal, eleito deputado pelo partido que Sidónio criara, o Partido Nacional Republicano, mas que o abandonara, em novembro, em protesto contra a repressão política levada a cabo pelas autoridades sidonistas, embora tenha mantido o seu assento no Parlamento. Já no início de janeiro de 1919, Cunha Leal vai colaborar com democráticos, evolucionistas e socialistas na preparação de um movimento revolucionário, que, em defesa da República, visava substituir o frágil recém-nomeado Governo de João Tamagnini Barbosa, considerado como subjugado às exigências das Juntas Militares (5), restabelecer a Constituição de 1911, adicionando-lhe o princípio da dissolução parlamentar, e entregar "todos os comandos militares e cargos de confiança política" a verdadeiros republicanos (6).

Embora tenha falhado, esta insurreição, que teve maior expressão em Santarém, vai fazer com que os monárquicos ligados à Junta Militar do Porto – a mais poderosa e que estava dominada pelas correntes integralista e couceirista, as mais radicais – assustados com a perspetiva do regresso dos democráticos, agora bastante real, se precipitem para a revolta. A 19 de janeiro de 1919, no Monte Pedral, Porto, pela uma da tarde, a restauração da Monarquia era proclamada pelo major Eurico Satúrio Pires perante uma formatura de militares, uma multidão de civis, e a presença do capitão Henrique de Paiva Couceiro, o eterno conspirador contra a República. (7) Nos dias seguintes, o movimento restauracionista iria alastrar com rapidez pelo Douro, Minho, Trás-os-Montes e parte da Beira Alta, praticamente sem encontrar resistência. (8) A Junta Governativa do Reino então criada tinha como presidente Paiva Couceiro, que assumia, igualmente, a regência em nome de D. Manuel, mesmo que este nunca tenha dado o seu consentimento ao golpe. O elenco ministerial incluía dois senadores do Parlamento sidonista, o visconde do Banho e o conde de Azevedo, o escritor e ex-ministro de João Franco, Luís de Magalhães, e o capitão António Sollari Allegro, que se tornaria célebre pelas piores razões, como adiante veremos. O governador civil passava a ser o conde de Mangualde, outro senador.

Em Lisboa, perante as notícias que chegavam do Norte, a "rua" republicana renasce e entra em ebulição. O Governo de Tamagnini Barbosa não pode contar com a Guarnição de Lisboa, que se tinha declarado neutral perante a situação política do país, e é obrigado a promover a organização e o armamento de batalhões de voluntários civis para combater os revoltosos. Os monárquicos de Lisboa, liderados por Aires de Ornelas e leais às orientações de D. Manuel, haviam permanecido na expectativa. No entanto, sentindo que a capital estaria à beira de cair nas mãos do povo republicano e sindicalista e temendo pela sua segurança, acabam por se refugiar no Forte de Monsanto na noite de 22 de janeiro de 1919, com uma força de mais de dois milhares de homens (9), após terem anunciado o seu apoio aos correligionários nortenhos. Mas a sublevação teria curta duração. Ao final da tarde do dia 24, tudo estava acabado, após a ofensiva das milícias republicanas e sindicalistas, acompanhadas por marinheiros e soldados, numa última reconstituição do bloco político-social que tinha implantado a República.

Enquanto, no Sul, os republicanos reprimiam a revolta de Monsanto e se organizavam para atacar os monárquicos do Norte, a Junta Governativa do Reino não perdeu tempo em promulgar legislação no Diário da Junta Governativa, que passara a substituir o Diário do Governo. Entre as diversas medidas tomadas, podemos destacar a revogação de toda a legislação criada pela República desde a sua implantação (incluindo a Lei da Separação das Igrejas do Estado), o restabelecimento de todos os símbolos da Monarquia, a abolição do sistema monetário republicano, a substituição dos governadores civis republicanos por monárquicos, a amnistia dos exilados políticos e religiosos, e a reintegração dos oficiais das Forças Armadas e dos funcionários públicos demitidos, expulsos ou condenados após o 5 de Outubro. A reintrodução da pena de morte para civis e militares foi aprovada pela Junta, mas não chegou a ser promulgada. Esta intenção é coerente com a dureza de atuação da Monarquia do Norte perante qualquer oposição, ou suspeita de oposição. Com efeito, os seus responsáveis criaram um clima de terror recorrendo a grupos de civis armados que, sob as orientações de Sollari Allegro, levavam a cabo perseguições a republicanos. Estes eram, com frequência, presos em condições desumanas e sujeitos a torturas e espancamentos, os quais, a acreditar nos relatos existentes, podiam atingir níveis de brutalidade que roçavam a barbárie. Pela violência que a caracterizou, a Monarquia do Norte foi apelidada de "Reino da Traulitânia" e os agentes da sua violência de "trauliteiros". (10)

Entretanto, em Lisboa, Tamagnini Barbosa demitiu-se e formou-se novo Governo, desta vez chefiado pelo histórico republicano José Relvas. A 3 de fevereiro, apresentou-se na Câmara dos Deputados como "completamente neutral" perante os vários interesses partidários republicanos e movido por dois objetivos fundamentais: pôr termo à revolta monárquica e unir a República, para a defender e salvar. Enquanto, nas semanas seguintes, o Governo se concentrou na subjugação dos monárquicos, a situação política foi discutida com animosidade na Câmara dos Deputados. Um dos tópicos que mais a ocupou foi o problema dos deputados monárquicos. Ao todo, havia 47 monárquicos com assento em ambas as câmaras parlamentares e a grande maioria deles – uns por envolvimento nas revoltas, outros presos, outros, ainda, fugidos, ou com medo de aparecerem perante os colegas republicanos – deixara de estar presente nas sessões. Isso não só levantava problemas de quórum, que vinham a dificultar o seu trabalho desde o início de janeiro, como questões de confiança e lealdade no seio de um órgão de poder que se desejava republicano. Na sessão de 11 de fevereiro, Cunha Leal pôs o dedo na ferida: "Não pode [sic] ser Senador ou Deputado da República os que se revoltam contra a República. Esta é que é a verdadeira doutrina, e por consequência proponho à Câmara, com toda a lealdade, que trate deste assunto, regulando as situações que são absolutamente anormais, dos Srs. Visconde do Banho e Conde de Azevedo, que continuam sendo Ministros do pseudo-Governo revolucionário existente no Norte e ao mesmo tempo representantes da República no Congresso, o que é uma coisa absurda." No fim da sessão, a Câmara dos Deputados aprovou a perda de mandato de 12 deputados monárquicos, entre eles, Aires de Ornelas.

A paranoia da infiltração parlamentar monárquica também chegou ao Senado, pois, dias antes, já José Carvalho de Almeida apontara o dedo ao poderoso empresário Alfredo da Silva, senador representante da Associação Industrial de Lisboa: "O que é estranho é que um indivíduo que é monárquico, que é germanófilo confesso, ande ainda à solta, fazendo agora de republicano, logo de monárquico, fazendo o jogo dos monárquicos, e diz-se até lá fora, não sei se é verdade, que na fábrica de adubos químicos que o Sr. Alfredo da Silva possui no Barreiro está instalado um posto de telegrafia sem fios, por meio do qual está em comunicação com os monárquicos do norte. Isto é que eu não posso provar; diz-se."

O problema dos deputados e senadores monárquicos estava diretamente relacionado com uma questão mais vasta e que foi objeto de acesas intervenções parlamentares: a ideia de que a resposta republicana perante as violências dos monárquicos deveria ser severa e que o Governo não estaria a fazer o suficiente nesse campo. Cunha Leal, mais uma vez, dirigindo-se a José Relvas, clamou: "Deixe-me V. Ex.ª mais uma vez estabelecer confronto entre o procedimento dos republicanos e o dos monárquicos do norte. […] Eles vão direitos ao seu alvo. Para proclamarem a monarquia, passam por cima de tudo. São implacáveis. […] São bandoleiros, mas sabem defender-se. Eu não quero que da parte da República se pratiquem os mesmos atos de bandoleirismo (Apoiados), mas quero que haja a mesma energia feroz e que o Governo, necessitando para a nossa eficaz defesa de medidas excecionais, não hesite um só momento em vir aqui pedi-las contra os adversários da República."

Apesar do equilíbrio de forças militares entre republicanos e monárquicos, a verdade é que os primeiros foram, a pouco e pouco, ganhando terreno, não obstante os problemas logísticos, e outros, com os quais se debateram. A 13 de fevereiro, aproveitando a ausência de Paiva Couceiro, de Sollari Allegro e da maioria das tropas monárquicas, elementos da GNR, entretanto rebatizada de Guarda Real, revoltam-se, e, com o apoio do Regimento de Artilharia, restauram a República na cidade. No Parlamento, o hemiciclo e as galerias manifestam-se efusivamente ao saber dos últimos acontecimentos no Porto. Poucos dias depois, todo o Norte do país caía, de novo, nas mãos dos republicanos e Paiva Couceiro fugia para Espanha. Era o fim da Monarquia do Norte e o início de uma nova fase da República.

(1) Cf. Filipe Ribeiro de Meneses, União Sagrada e sidonismo. Portugal em Guerra (1916-1918), Lisboa, Edições Cosmos, 2000, p. 244.
(2) Cf. Helena Moreira da Silva, Monarquia do Norte, Lisboa / Matosinhos, QuidNovi, 2006, p. 18.
(3) Cf. Helena Moreira da Silva, op. cit., p. 19; cf. Miguel Dias Santos, Antiliberalismo e Contra-Revolução na I República (1910-1919), dissertação de doutoramento em História, Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, 2009, p. 431.
(4) Para este parágrafo, cf. António José Telo, Primeira República II - Como Cai um Regime, Lisboa, Editorial Presença, 2011, p. 205.
(5) A dinâmica que se estabeleceu entre as Juntas Militares, sobretudo a do Porto, e a fação republicana do sidonismo, encabeçada por Tamagnini Barbosa, após a morte de Sidónio Pais, é demasiado complexa para ser aqui analisada. Para a sua história detalhada, ver capítulo I da parte III da já referida dissertação de doutoramento de Miguel Dias Santos.
(6) Cf. "Os Acontecimentos". A Capital, n.º 2999, 12 de janeiro de 1919, p. 1.
(7) Cf. Rocha Martins, A Monarquia do Norte, vol. 1, Lisboa, Bonecos Rebeldes, 2008, p. 167-171.
(8) Cf. Miguel Dias Santos, op. cit., p. 469.
(9) Cf. António José Telo, op. cit., p. 211.
(10) Para este parágrafo, cf. Helena Moreira da Silva, op. cit., p. 68-75, p. 78; cf. Miguel Dias Santos, op. cit., p. 518-522.
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