Apesar dos crescentes esforços legislativos, a censura aos livros exerceu-se sempre de forma pouco consistente, dependendo, em grande parte, de denúncias, da colaboração de editores e livreiros, da intervenção da polícia política (1) e da cumplicidade de entidades como os Correios ou a Guarda Fiscal.
Em 1926, o Decreto n.º 12 008 proibia a venda ou divulgação de “cartazes, anúncios, avisos e em geral quaisquer impressos, manuscritos, desenhos ou publicações que contenham ultraje às instituições republicanas ou injúria, difamação ou ameaça contra o Presidente da República, no exercício das suas funções ou fora dele, ou que aconselhem, instiguem ou provoquem os cidadãos portugueses a faltar ao cumprimento dos seus deveres militares, ou ao cometimento de atos atentatórios da integridade e independência da Pátria, ou contenham boato ou informação capazes de alarmar o espírito público ou de causar prejuízo ao Estado, ou que contenham afirmação ofensiva da dignidade ou do decoro nacional, ou ainda algumas das ofensas previstas nos artigos 159.º, 160.º, 420.º e 483.º do Código Penal e bem assim quaisquer publicações pornográficas ou redigidas em linguagem despejada ou provocadora contra a segurança do Estado, da ordem e da tranquilidade públicas.”
Em 1933, após a ascensão de António de Oliveira Salazar a Presidente do Conselho, foi instituída a censura prévia também às publicações não periódicas que versassem “assuntos de carácter político ou social”, através do Decreto n.º 22 469, respeitando, aliás, o espírito da Constituição recentemente aprovada, que determinava como função do Estado a defesa da opinião pública “de todos os fatores que a desorientem contra a verdade, a justiça, a boa administração e o bem comum.” (2)
Ainda em 1933, um relatório elaborado pela Direcção-Geral dos Serviços de Censura à Imprensa, a pedido de Salazar, dava conta do desconforto sentido face à ineficácia do controlo dos livros pelos serviços da censura, nomeadamente por falta de pessoal. Este relatório propunha que os livreiros entregassem listas das publicações recebidas de “carácter político ou social e das que afetem a moral pública”. Dessas listas, selecionar-se-iam as obras “mais suspeitas” que, posteriormente, seriam ou não visadas pela Comissão de Censura. As restantes publicações teriam autorização para circular. A Direcção-Geral de Censura manteria um índice das publicações proibidas que funcionaria como instrumento para a fiscalização dos postos de venda pelas autoridades policiais. O mesmo documento enumerava os princípios a que deveria obedecer a censura.
A política e a legislação subsequentes deram continuidade ao reforço do controlo dos livros, através dos serviços de censura, da fiscalização no terreno pela polícia política, mas também através da responsabilização dos intervenientes nos processos de edição e de comercialização dos livros. Os próprios editores podiam solicitar a análise prévia das obras.
Em 1943, foi publicado o Decreto-lei n.º 33 015, com o objetivo de vigiar a atividade das empresas editoriais. Este diploma determinava no artigo 2.º: “sempre que se publique, edite, reedite, venda ou distribua qualquer escrito lesivo dos princípios fundamentais da organização da sociedade ou prejudicial à defesa dos fins superiores do Estado poderá o Ministro do Interior (…) ordenar que junto das empresas responsáveis, e à custa destas, funcionem delegados do Governo”.
A ineficácia deste decreto-lei foi objeto de crítica na Assembleia Nacional, pela voz do Deputado Pinheiro Torres que, em 1946, lamentava “que aquele preceito salutar que evitava tanto mal (...), nunca teve execução, continuando tudo como dantes, o número das empresas editoriais suspeitas a crescer e os escritos subversivos a multiplicarem-se!”
Numa intervenção proferida em 1951, o Deputado Castilho de Noronha defendia a revisão da legislação relativa à censura prévia e a necessidade de criar “uma lei que regule, em termos claros e insofismáveis, o exercício da censura”, de forma a minorar a sua dependência dos critérios arbitrários dos censores. Para apoiar a sua ideia, o orador recorreu a uma citação de Salazar:
“A censura é já de si odiosa. A censura irrita. Disse-o uma vez o Sr. Dr. Oliveira Salazar ao jornalista que o entrevistava, (...) porque (...) não há nada que o homem considere mais sagrado do que o seu pensamento, a expressão do seu pensamento. (...)
Temos, pois, que a censura é um mal. Mas, pelo que S. Ex.ª [Salazar], em justificação do estabelecimento da censura, disse logo a seguir às palavras que acabei de citar, é um mal necessário.”
Em 1957, o Deputado Marques Teixeira apelava “à intensificação da ação policial” no controlo dos livros infantis e juvenis, lamentando “a nocividade de certas histórias chamadas de quadradinhos”, “a obscenidade das imagens de alguns livros” e a “febre das novelas policiais”, veículos para a delinquência e a difusão das “toxinas do comunismo internacional”. Na mesma intervenção, o Deputado defendia a edição abundante de “livros bons” que “recreiam, instruam e eduquem” como forma de combater os “livros condenáveis” e elegia como temas nobres para os jovens as viagens, as biografias e a História, entendida “não apenas como registo dos factos, mas profundo sentido de vida dos povos, sem deixar de apontar e justamente enaltecer os pontos cimeiros da trajetória da existência da comunidade nacional dos nossos dias.”
Com o objetivo de impedir a divulgação dos “escritos subversivos”, o controlo das obras literárias era também exercido na comunicação social. As menções na imprensa, através de artigos ou de anúncios, a livros e a autores não enquadrados na ideologia dominante eram alvo de cortes pela Censura. Por exemplo, um artigo de 1968, do Notícias da Amadora, intitulado “As traduções do mundo”, noticiava que, segundo estatísticas da UNESCO, a União Soviética era o país que mais traduzia e que Lenine era o autor mais traduzido. Enviado à Censura, o artigo foi integralmente cortado. (3)
Com a subida de Marcelo Caetano ao poder, em 1968, criaram-se expectativas de mudança. Em 1971, o debate da lei de imprensa na Assembleia Nacional levou um grupo de intelectuais portugueses, entre os quais se incluíam os escritores Augusto Abelaira, Carlos de Oliveira, Fernando Namora, Ferreira de Castro, José Gomes Ferreira, José Saramago, Maria Lamas, Mário Ventura, Natália Correia e Sophia de Mello Breyner Andresen, a denunciar a “repressão de todas as expressões do pensamento” e a exigir uma “efetiva liberdade de informação e expressão”. (4)
No debate parlamentar sobre a lei de imprensa, Miller Guerra, Deputado da designada “Ala Liberal”, considerava a instituição da censura uma "arma defensiva de todos os monopólios ideológicos" e defendia o pluralismo das ideias:
"Nós, portugueses, estamos bem colocados para ajuizar a eficácia da censura. Com alguns períodos intermediários de liberdade, sofremos os seus rigores há perto de quatro séculos. Antigamente exercida em nome da pureza da fé e da conservação do sossego público, exerce-se modernamente em nome da unidade nacional e em razão da impreparação cívica do povo.
(...)
A censura evitou, decerto, as convulsões mais ou menos profundas por que outros povos passaram. Poupou-nos incómodos e conflitos, mas estas vantagens imediatas são desvantagens à distância, porque afetam as gerações vindouras, limitando-lhes o horizonte mental e isolando-as das grandes correntes da história.
Fizeram-nos, e fazem-nos, muita falta os confrontos com modos diferentes de viver e considerar o mundo; a discussão nascida da heterogeneidade das ideias; a livre oposição às ideologias oficiais; a variedade das opiniões, das crenças e dos gostos. O que hoje se denomina pluralismo combateu-se como se fosse um adversário corruptor da paz pública, dos valores tradicionais, da unidade. Porém, a unidade verdadeira, sólida, incontestável, provém da diversidade de pensamento e de atitudes e não da monotonia das concordâncias."
Apesar das expectativas e do avolumar da contestação em vários sectores da sociedade, na prática, manteve-se o clima repressivo da circulação de livros com ideias contrárias ao regime, como se pode constatar no despacho do Ministro do Interior, Gonçalo Rapazote, em 1972:
“Tendo-se verificado o aumento substancial de publicações que atentam contra a sociedade e a ordem e ofendem os bons costumes, deverá a Direção-Geral de Segurança dedicar um cuidado particular ao imediato cumprimento das seguintes instruções:
1 - Relacionar as tipografias que se dedicam à impressão de livros suspeitos – pornográficos ou subversivos;
2 - Organizar um plano de visitas regulares a essas tipografias (…) e às livrarias de todo o país para sequestro de livros (…) e organizar brigadas especializadas para esse serviço;
3 - Organizar o serviço de vigilância de entrada no país de publicações pornográficas e suspeitas (…)". (5)
Efetivamente, o fim da instituição da censura só ocorre após a Revolução de 25 de Abril de 1974, nomeadamente com a aprovação da Constituição de 1976, que consagra no artigo 37.º a liberdade de expressão e informação e no artigo 42.º a liberdade de criação cultural.
(1) A Polícia Política assumiu várias nomeações: Polícia Internacional (1928); Polícia de Vigilância e Defesa do Estado – PVDE (1933); Polícia Internacional de Defesa do Estado – PIDE (1945) e Direção-Geral de Segurança – DGS (1969).
(2) Artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa, aprovada pelo Plebiscito Nacional de 19 de março de 1933.
(3) Notícias da Amadora, n.º 1523, 27 de fevereiro 2003, Suplemento Censura 16, p. 8.
(4) Abaixo-assinado da Comissão Nacional de Defesa da Liberdade de Expressão sobre a proposta de Lei de Imprensa que iria ser discutida na Assembleia Nacional.
(5) A política de informação no regime fascista, Lisboa, CLNRF, Presidência do Conselho de Ministros, 1980, p. 266-267.
Adaptado do texto introdutório da obra Livros proibidos no Estado Novo. Lisboa, Assembleia da República, 2005 (3.ª edição, 2015).