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CELIBATO DAS ENFERMEIRAS NO ESTADO NOVO

Em 1938, através do artigo 60.º do decreto-lei n.º 28 794, de 1 de julho, o regime do Estado Novo determina a proibição do exercício da profissão de enfermagem nos hospitais civis por mulheres casadas:
Deputada Maria van Zeller, 1945. Arquivo Histórico Parlamentar (AHP).
Deputado Melo e Castro, 1966. AHP.
O Deputado Urgel Horta (terceiro a contar da esquerda) a conversar com outros parlamentares, 1966. AHP.
Aspeto da Sala das Sessões da Assembleia Nacional, 1960. AHP.
"Nos lugares dos serviços de enfermagem e domésticos (serviço interno) a preencher por pessoal feminino só poderão de futuro ser admitidas mulheres solteiras e viúvas, sem filhos, as quais serão substituídas logo que deixem de verificar-se estas condições."

O decreto-lei n.º 31 913, de 12 de março de 1942, confirma essa orientação:

"O tirocínio ou prestação de enfermagem hospitalar feminina são reservados a mulheres solteiras ou viúvas sem filhos." (§ 4.º do artigo 3.º).

O exercício da enfermagem é entendido como uma profissão eminentemente feminina, como transparece na intervenção Deputada Maria van Zeller, na Assembleia Nacional, em 1947:

"É um facto mundialmente assente, e por razões fáceis de compreender, que, salvo em casos especiais, os serviços de enfermagem devem ser confiados a mulheres. Ninguém como a mulher sabe debruçar-se delicadamente sobre a dor e no momento oportuno dizer a palavra que consola, encontrar o gesto e a atitude que aliviam e, na sua sensibilidade afetiva, dedicar-se aos doentes com um entusiasmo e espírito de sacrifício que, por vezes, atingem o heroísmo." (Diário das Sessões, n.º 112, 25 de março de 1947, p. 1044)

No entanto, ao considerar-se a enfermagem como uma profissão feminina incompatível com a constituição de família, nega-se, por outro lado, a missão mais importante das mulheres, que, de acordo com a ideologia do regime, assenta no seu papel de "esposas e mães".

Assim, dentro do próprio sistema, o diploma de 1942 sofre contestação, como é percetível nas sessões da Assembleia Nacional, com intervenções em defesa do fim da proibição do casamento das enfermeiras, tendo por base a "missão familiar” das mulheres.

Em 1950, o Deputado José Meneres associa-se à luta da Liga Portuguesa de Profilaxia Social pela revogação da legislação.

Compreendendo que a enfermagem deve ser "uma espécie de sacerdócio", de difícil conciliação com as "preocupações e deveres familiares", considera que apenas no caso das freiras se pode alcançar "o fim ideal de perfeita assistência na doença".

Porém, na impossibilidade de as religiosas assegurarem toda a assistência nos cuidados de sáude, o Deputado defende que o exercício da profissão por enfermeiras laicas deve obedecer aos princípios orientadores da Constituição, que "fazem derivar toda a organização política da Nação da constituição da família":

"A mulher tem importante missão a realizar: a de ser esposa e mãe. Todas as profissões que lhe sejam permitidas têm, a meu ver, de ser organizadas de acordo com este pressuposto, como dependência dele, e não de forma inversa.

O casamento e a constituição da família não são, em regra, elementos impeditivos do exercício de enfermagem que a mulher casada, consciente de ter realizado honestamente o fim social a que Deus a destinou, pode dedicar à sua profissão muito maior carinho e devoção do que aquelas que, por virtude daquela proibição desumana, venham a ser vítimas dos mais graves conflitos morais, que, por evidentes, me dispenso de referir pormenorizadamente." (Diário das Sessões, n. º 51, 27 de abril 1950, p. 938)

Também o Deputado Melo e Castro, em 1951, dá voz ao movimento pelo fim da proibição do casamento das enfermeiras, associando-se à pretensão do Sindicato Nacional dos Profissionais de Enfermagem, de médicos conhecedores das necessidades hospitalares, de "numerosas senhoras que exercem a profissão de enfermeiras (…) de diferentes matizes sociais", mas também da própria Igreja, que "desde o vértice venerando da sua hierarquia, reprova a vigente doutrina que exige o celibato para a enfermagem hospitalar feminina." (Diário das Sessões, n.º 106, 1 de maio de 1951, p. 995)

Mais tarde, em 1955, o tema é retomado pelo Deputado Urgel Horta, que considera o casamento benéfico no exercício da enfermagem, pois exerce sobre a mulher "uma ação de natureza fisiológica, de natureza psíquica, que a torna mais apta e mais compreensiva da alta missão social que desempenha" e aperfeiçoa as "suas qualidades morais – bondade, delicadeza, modéstia, abnegação, autoridade." Entende também a proibição do casamento das enfermeiras como contrária à defesa da família, enquanto princípio basilar do Estado, e denuncia a injustiça desta disposição legal:

"Não se compreende que num país onde a quase totalidade da população pratica a religião católica se lance sobre uma classe tão prestimosa uma injusta e infeliz proibição, sentença condenatória do direito de poder constituir família, do direito de organizar, com toda a legitimidade, o seu lar." (Diário das Sessões, n.º 84, 24 de março de 1955, p. 636)

O decreto-lei n.º 44 923, de 18 de março de 1963, vem autorizar o casamento das enfermeiras dos hospitais civis, continuando, no entanto, "a reconhecer-se as vantagens de, sempre que possível, contribuir, através de medidas legislativas, para afastar a mulher casada de preocupações e ambientes estranhos ao seu lar, onde lhe está reservada a mais nobre missão" e a considerar-se aconselhável o afastamento das mulheres casadas da profissão, "posto que a irregularidade de horários e a natureza absorvente das funções dificilmente se coadunam com os deveres de esposa e de mãe". O diploma de 1942 é alterado nos seguintes termos:

"Ao tirocínio e à prestação de enfermagem hospitalar feminina, em princípio reservados a mulheres ou viúvas sem filhos, serão também admitidas mulheres casadas e viúvas com filhos, quando as necessidades de serviço aconselhem essa admissão, a qual implicará, sempre que possível, o estabelecimento de horários que melhor se ajustem às particulares condições familiares das tirocinantes ou enfermeiras."

Na Assembleia Nacional, o Deputado Moura Ramos saúda a aprovação do decreto-lei n.º 44 923, acusando a lei antiga de "dar azo a inúmeros casos de mancebia, de filiações ilegítimas, de abortos criminosos e prostituição clandestina, chegando-se ao ponto (…) de se realizarem casamentos de enfermeiras que o não podiam celebrar e que para evitarem ser despedidas dos serviços não faziam averbar nos respetivos bilhetes de identidade o seu novo estado." (Diário das Sessões, n.º 93, 18 de abril de 1963, p. 2339)
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